Em outubro de 2024, a morte do poeta e letrista Antonio Cicero causou comoção no Brasil. Para além da perda de um grande artista, chamou atenção a forma como ele se foi.
Aos 79 anos, convivendo com o diagnóstico e os sintomas do Mal de Alzheimer, Cicero decidiu tomar as rédeas do seu fim. Em Zurique, na Suíça, para onde viajou com seu companheiro, o poeta exerceu um direito ainda negado aos brasileiros e se submeteu a um procedimento de morte voluntária assistida (MVA).
Os chamados direitos de fim de vida são um tema que há algum tempo vem sensibilizando e mobilizando o jornalista Adriano Silva. Fundador do Draft, Adriano abraçou essa causa por meio da plataforma Boamorte.org (ele falou a respeito aqui) e, mais recentemente, abordou o assunto em formato livro, com o lançamento de O dia em que Eva decidiu morrer — Uma reflexão sobre autodeterminação e direitos de fim de vida (Ed. Vestígio).
Na obra, Adriano ilumina o debate, explica conceitos e traz “histórias reais de pessoas que decidiram ir embora quando viver se tornou um martírio”, aproximando o tema do público brasileiro.
Leia a seguir um trecho exclusivo:
Que pessoas podem realizar um procedimento de morte voluntária assistida (MVA)?
Há três critérios principais para a aprovação de um candidato à morte voluntária assistida: terminalidade, sofrimento e autodeterminação
Em três dos quatorze países que permitiam a MVA em 2024 – Estados Unidos (onze estados), Austrália (sete estados) e Nova Zelândia –, a legislação requer que a pessoa seja portadora de uma doença terminal, com diagnóstico de sobrevida de seis meses. Ou seja: trata-se de antecipar uma morte certa que já se avizinha, evitando que o indivíduo sofra com o chamado “tratamento fútil”.
Nas outras onze jurisdições – entre elas o Canadá e países da Europa –, a ênfase está no sofrimento do indivíduo. Mesmo que não haja um diagnóstico de terminalidade imediata, se a vida da pessoa se tornar inaceitável em decorrência de um quadro de incapacitação, decrepitude ou doença crônica, isso basta para que ela tenha acesso à MVA. (Muitas vezes, a ausência de terminalidade no curto prazo é precisamente o que torna esses casos os mais dramáticos.)
E há uma terceira linha de raciocínio, limítrofe em relação às legislações atuais, que defende o direito do indivíduo à autodeterminação.
Nessa acepção, a morte é considerada um direito inviolável da pessoa, tanto quanto a própria vida. Ou seja: ninguém pode ser privado de viver – nem de morrer. A pessoa, portanto, teria a prerrogativa legal de encerrar sua existência sem a necessidade de se justificar diante de um médico ou de um juiz. É o que defendem, por exemplo, Philip Nitschke, da Exit International, e a organização suíça Pegasos
O próximo passo seria o da autonomia do indivíduo no que se refere ao encerramento da sua vida. Está em discussão na Holanda, desde 2020, por exemplo, dentro do conceito de self-deliverance (algo como “autolibertação”), a ideia de que pessoas, a partir de uma determinada idade (provavelmente 75 anos) possam ter acesso a uma dose letal de medicamento – a chamada completed life pill (algo como “comprimido da vida completa”), caso o desejem.
Isso estabeleceria o direito constitucional dos indivíduos, a partir de certa idade, de ir embora no momento em que decidirem que já viveram tudo o que desejavam viver. E de fazê-lo sem depender de ninguém, no que poderíamos chamar de morte voluntária assistida “independente”.
A Holanda, desde 2002, admite a MVA em suas duas versões – autoadministrada e administrada por terceiros – depois de quase quarenta anos de debate. Trata-se do primeiro país a legalizar o procedimento – antes, apenas o estado do Oregon, nos Estados Unidos, em 1994, e o estado Northern Territory, na Austrália, em 1995, tinham legislado favoravelmente à autodeterminação.
Hoje, entre os holandeses, a palavra “morte”, com o peso que estamos acostumados a atribuir a ela, está sendo substituída na linguagem diária por termos como “vida realizada” (voltooid leven) e “vida completa” (vol leven). Isso se aplica em especial às pessoas que padecem na velhice com a falência progressiva da saúde e decidem não esperar pela morte “natural”
A própria peça jurídica que legislou favoravelmente ao direito de morrer sem sofrimento, na Holanda, tem o nome de “Lei de Rescisão da Vida”. Como se a existência fosse um contrato da pessoa com ela mesma que pudesse ser desfeito – por ela, e apenas por ela – a qualquer momento.
Derek Humphry, um dos pioneiros na luta pelos direitos de fim de vida no mundo, chamava a atenção para o fato de que essa prerrogativa é especialmente importante para as mulheres. Homens idosos em geral contam com a ajuda de uma companheira em seus últimos dias – já o contrário não é verdade. É comum que mulheres em idade avançada se encontrem completamente sozinhas – sem um familiar, um amigo, um acompanhante ou um médico que se solidarize com seu sofrimento.
Com a MVA tornada acessível, por meio do “comprimido da vida completa”, nos moldes do que está sendo discutido na Holanda, é possível que venhamos a ter uma jurisdição que finalmente assegure a todos – e às mulheres idosas, em especial – não apenas uma boa vida, mas também uma boa morte
No critério de terminalidade, o poder está com o médico – a pessoa precisa de um atestado para morrer. No critério de sofrimento, a opinião do indivíduo conta mais do que o diagnóstico clínico – mas um ou mais médicos precisam corroborar essa decisão.
Já no critério de autodeterminação, e também no de autonomia, o encerramento da vida deixa de ser um assunto médico para se tornar uma escolha do indivíduo. Trata-se da desmedicalização da morte, que passa a ser uma decisão de foro íntimo – um evento privado que pode ser realizado pela pessoa em sua casa, e não um evento clínico que precise acontecer num hospital.
(…)
Um outro jeito de enxergar esse cenário: quanto mais liberal o ambiente, mais a morte é um assunto individual e particular. Já em ambientes mais conservadores, a morte é um assunto judicializado – de um lado, o indivíduo precisa pedir permissão aos médicos para morrer, como se sua vida pertencesse à medicina e não a ele próprio; de outro lado, ele tem que brigar na Justiça pelo direito à autodeterminação, porque a existência é um bem jurídico que lhe pertence, mas do qual ele não pode dispor.
Adriano Silva, 54, é jornalista e fundador do Projeto Draft. É autor de onze livros, entre eles a série O Executivo Sincero, Treze Meses Dentro da TV, A República dos Editores, Por Conta Própria: do desemprego ao empreendedorismo e O dia em que Eva decidiu morrer — Uma reflexão sobre autodeterminação e direitos de fim de vida.
Ao longo da vida, vamos colecionando papéis sociais que “definem” quem somos – mas só na superfície. Quando foi a última vez que você se despiu dessas personas e se viu no espelho? Ou enxergou de verdade quem estava ao seu lado?