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O entorno importa: como o retrofit de um prédio antigo deu origem a um projeto que escuta os anseios de pessoas em situação de rua

Paulo Vieira - 28 out 2024
População atendida pelo projeto montado por Bruno Scacchetti e Jorge Broide (foto: acervo Projeto Gabriela).
Paulo Vieira - 28 out 2024
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Ao contrário do que canta Criolo, talvez exista amor em SP. Pode a ganância vibrar e a vaidade excitar, mas alguns daqueles que possuem a grana que ergue e destrói coisas belas decidiram operar sob uma lógica em que ela, a grana, não é o único nem o principal fundamento.

Caso do empreendedor paulistano Bruno Scacchetti, CEO e fundador da Metaforma, construtora responsável por alguns retrofits das áreas centrais de São Paulo e do Rio. Um desses é o Basilio177, residencial que revitaliza e amplia o quase centenário prédio art déco da Telesp, a antiga companhia telefônica paulista, na rua 7 de Abril, projetado e edificado originalmente pelo escritório do arquiteto Ramos de Azevedo.

Com 274 apartamentos de 40m2 a 124m2 e nada menos do que 112 tipologias (formatos) diferentes, o Basilio177 deve ser entregue em menos de um ano. Ele se conecta com a galeria Metrópole, na avenida São Luís, outrora um dos endereços chiques de São Paulo, e está a passos de edifícios icônicos como o Itália, o Esther e o Copan. A proximidade desses medalhões arquitetônico-turísticos não impediu, contudo, a degradação de várias quadras da região, inclusive as do Basilio. 

O novo projeto incluirá uma torre inteiramente nova e um food hall (mercado gastronômico), já chamado de Ramal em homenagem à origem do imóvel – era dali que eram feitas as ligações telefônicas da cidade. As áreas comuns do Basilio servirão também como passagem para todos, não apenas para os moradores.

Bruno Scacchetti (à esq.), CEO da Metaforma, nas obras do Basilio177 (foto: divulgação Metaforma).

Trata-se aqui de dar curso a uma ideia trivial da arquitetura paulista até pelo menos os anos 1970, quando a exclusão e a desconexão com o entorno ainda não estavam em voga. Edifícios como o Copan e o Conjunto Nacional, este na avenida Paulista, hoje são referências em diversidade e bom urbanismo justamente por ter essas características.

Mas atuar para reavivar e dar novos usos ao patrimônio histórico, no caso do prédio da Telesp por anos e anos completamente ocioso, algo sem dúvida meritório e que não precisa nem deve prescindir do lucro – nos Estados Unidos, retrofits representam 15% do mercado imobiliário, segundo Scacchetti –, não faz do empresário o sujeito que contraria cabalmente o hit de Criolo. A sua preocupação com o entorno, e com os moradores em condição de rua que vivem ali, sim.

A METAFORMA CRIOU UM PROJETO DE ATENÇÃO AOS HABITANTES DAS CALÇADAS E “MALOCAS” DA REGIÃO CENTRAL DE SÃO PAULO

Desde o início, a ideia da Metaforma não era “higienizar” a região, mas criar algum tipo de convivência com aquelas pessoas, a seu modo também moradores do lugar, alguns ali há décadas.

Junto com o psicanalista e professor da PUC-SP Jorge Broide, adepto da chamada psicanálise em situação social crítica, a Metaforma criou o projeto Gabriela, de atenção aos habitantes das calçadas e “malocas” da região. Para usar o jargão psicanalítico, buscou-se dar “escuta ativa” àqueles moradores. 

Além da Gabriela que dá nome ao projeto, vivem ou viviam por lá seu companheiro Saulo, Hipólito, Andreia, Daniel, Alaf, Sozé e outros. Scacchetti já havia trabalhado com Broide em projeto semelhante, mas corporativo, na região do Jockey Club, em São Paulo, conhecido ponto de prostituição da cidade.

“Desde que as grandes incorporadoras abriram capital [nos anos 2000], o setor virou uma indústria de reprodução de imóveis”, afirma Scacchetti, em tom crítico. E complementa: 

“Produzir rápido faz parte do negócio, mas no passado as empresas eram familiares e o incorporador era conhecido e benquisto no bairro – não um vilão, como hoje. Um novo projeto tem de ser positivo para quem vive no local, é preciso diálogo, é preciso entender que as pessoas estão há décadas ali. Isso devia ser natural”

Scacchetti diz que seu negócio é “extramuros” e que por isso todo retrofit da Metaforma envolve entender o entorno, com atenção a eventuais moradores de rua. Em uma frase curta: o entorno importa.

Já há problemas suficientes na operação de um retrofit, pois o diagnóstico das condições estruturais do imóvel que vai passar por transformação é demorado e, portanto, custoso. Trata-se de uma fase evidentemente estranha a quem começa uma edificação do zero. 

E embora a prefeitura de São Paulo tenha inserido uma série de prédios a ser retrofitados num programa de isenção fiscal, não é premiada financeiramente a redução dramática de emissão de gases do efeito estufa nesse tipo de obra, redução motivada pelo fato de não haver demolição. 

Assim, custear o projeto Gabriela por 18 meses, retirando verba de marketing do Basilio e encontrando depois outro ator para financiar sua continuação – a Basf –, mostra o nível de engajamento da Metaforma com o tema. 

Há aí diversas questões envolvidas, da revitalização do Centro a um inconformismo com as condições degradantes dos menos afortunados. 

Scacchetti, contudo, toma cuidado para não fazer disso uma bandeira: 

“Não marqueteamos esse trabalho, mas buscamos viabilizá-lo tentando engajar outros agentes privados”

O empresário diz que sugeriu a Broide criar algumas métricas para avaliar o progresso do Gabriela, e que o psicanalista sempre lhe disse que “não existe fórmula”, que seria necessário “entender a realidade de cada um”. 

A realidade e também o desejo de cada um, que pode ser, muitas vezes, ficar exatamente onde já se está: na rua.

ENCONTROS REGULARES COM A POPULAÇÃO DE RUA PERMITEM DETECTAR OS DESEJOS DE QUEM VIVE NA INVISIBILIDADE

A equipe de Broide conta ainda com a psicóloga Camila Ribeiro Costa Leite e onze formandos de psicologia da PUC sob a coordenação dela. 

Esse time mantém encontros regulares, três vezes por semana, com a população de rua daquilo que chamam de território, um perímetro que extrapola os limites do Basilio177 e avança para a rua 24 de Maio e para a praça da República. 

Foram até aqui cerca de dois anos e meio de conversas que transcendem em muito o trabalho dos assistentes sociais do município, mais preocupados com as condições físicas dos moradores.

José Sávio Coelho, o Sozé, durante o lançamento de seu livro (foto: acervo Projeto Gabriela).

Algumas vontades detectadas nessas conversas foram viabilizadas. Para Broide, esses desejos e sua consecução são os “fios que amarram os sujeitos à vida” nos planos físico e psíquico. Um produto do projeto foi a publicação de um livro de José Sávio Coelho, o Sozé, que mantinha sempre consigo a duras penas seus escritos em papéis. 

A publicação de O Inimitável Sozé – Viver em São Paulo foi subsidiada por uma editora parceira, a Entremares. O livro tem a renda de venda dos exemplares destinada ao autor – também o responsável pela comercialização.

Natural de Ponte Nova (MG), Sozé, de 66 anos, conseguiu ainda mais com o acompanhamento do Gabriela. Ele terminou o ensino médio e formalizou-se para receber a aposentadoria, hoje sua principal receita. Passou também a alugar um quarto no bairro próximo dos Campos Elíseos. 

Mas nada é definitivo. O álcool não foi abandonado, apenas reduzido, e ele corre risco de despejo, o que poderia colocar também em risco os exemplares da obra que publicou. Nela, há prosa autobiográfica e poesia, muitas vezes para exaltar a cidade de São Paulo e o trabalho. Há também meditações sobre a vida:

Nós moradores de rua/ Temos uma vida trabalhada/ Ela que ficou na lembrança/ Ninguém quer nem saber/ Sobre nós só desconfiança/ Sem sequer nos perceber

(verso do poema “Nossa Vida na Rua”, composto em 2019 e publicado em O Inimitável Sozé, de José Sávio Coelho, morador de rua atendido pelo projeto Gabriela)

Como parte do lançamento do livro, Sozé chegou a receber um convite da prefeitura de Ponte Nova, sua cidade natal, para divulgá-lo lá. Ele viajou ao município em julho passado. Sem mencionar seu tempo nas ruas, a “Folha de Ponte Nova” noticiou a rápida volta à cidade do escritor.

“O AGENTE PRIVADO TEM UM PAPEL NA TENTATIVA DE ENCAMINHAR SOLUÇÕES PARA O PROBLEMA, QUE NÃO É SÓ DAQUI DE SÃO PAULO”

Bruno Scacchetti sabe que muitas vezes o fio que amarra os sujeitos do Gabriela à vida é composto de desejos que se modificam e que não raro se anulam. 

A notícia de que o carioca Hipólito conseguiu se livrar do crack e do álcool, deixar as ruas, retomar sua profissão, casar-se e ter um filho foi celebrada por alguns companheiros, que também tentaram seguir esse caminho. 

Mas muitas vezes o tempo passado numa comunidade terapêutica parceira do projeto, internação essencial para a retomada da vida de Hipólito, acaba mal, com fugas e o retorno inexorável para as ruas do Centro. Bruno afirma:

“O mínimo que a gente pode fazer é cumprimentar essas pessoas. Às vezes a Gabriela me pede dinheiro, e eu pergunto qual o problema, como posso ajudar. Tudo é muito complexo e acredito que o caminho para uma tentativa de resposta de verdade à questão está na coesão entre os setores, o setor público, o setor privado e o terceiro setor”

Não é nada fácil para as pessoas do projeto e para tantos outros moradores de rua retrofitar a própria vida. Alaf, morador do território e egresso do sistema prisional, foi um dos que não conseguiram contrariar a estatística, para usar uma expressão dos Racionais MCs.

A ausência de Alaf nos atendimentos individuais e nas oficinas de desenho do Gabriela foi notada em junho passado. Camila e sua equipe iniciaram uma busca por seu paradeiro. Dois meses depois, souberam da morte de Alaf e de seu enterro como indigente. 

A equipe então manteve interlocuções com a família de Alaf e com o Instituto Médico Legal de São Paulo para prover reconhecimento do corpo e um desfecho menos indigno para ele.

Chega a ser desalentador pensar que a morte de alguém com quem se estabelece um vínculo afetivo, algo que deveria gerar máxima consternação, é uma situação bastante esperada para quem atua com a psicanálise social crítica. Mas é preciso seguir em frente. O método de Broide, a ser aplicado talvez com a mesma equipe, também será utilizado no próximo retrofit da Metaforma, agora na avenida Angélica, em Higienópolis.

O entorno sempre importa.

 

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