O que significa ser homem hoje? O Memoh quer redefinir a masculinidade com conversa, acolhimento e escuta

Dani Rosolen - 3 nov 2020
Pedro de Figueiredo, fundador do Memoh.
Dani Rosolen - 3 nov 2020
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“Quanto mais eu estudo e me envolvo nessas questões de masculinidade, fica mais difícil para mim responder o que é ser homem. São tantas as formas de se colocar como homem no mundo que seria leviano restringir isso a uma frase.”

É assim que Pedro de Figueiredo, 33, avalia sua transformação após três anos da fundação do Memoh, negócio social que busca gerar mudanças de percepção sobre masculinidades (assim, no plural) para promover a equidade de gênero. 

O nome (Memoh é “homem” ao contrário) resume a ideia de ajudar homens a se enxergarem por ângulos diferentes. Isso é feito por meio de grupos reflexivos, produção de conteúdo e consultorias voltadas ao ambiente corporativo.

Segundo Pedro, cerca de 500 homens (além das pessoas com quem convivem) já foram impactados pelo Memoh, assim como os colaboradores de umas 30 empresas clientes.

A IDEIA SURGIU QUANDO PEDRO PASSOU A SE VER COMO PARTE DO PROBLEMA

Carioca, o publicitário Pedro atuou nas agências Espalhe MSLGroup, FCB Brasil, Agência3 e na Coca-Cola antes de empreender.

“Adoro a área de comunicação, mas comecei a perceber que poderia contribuir de outra forma…”, diz. “E essas questões de gênero sempre me impactaram.”

Os estudos e a terapia (que o ajudou a entender seu incômodo) fizeram o interesse crescer. Mas levou um tempo até a ficha cair: antes de agir, Pedro precisava se implicar no problema.

“Assim como a maior parte dos homens, quando entrei nesse debate foi de forma equivocada. Achava que precisava falar o que a mulher tinha que fazer ou deixar de fazer…  Até que entendi que tinha de falar sobre mim, sobre homens… Buscando meus pares para discutir”

Com essa nova visão, ele se inscreveu em um curso de desenvolvimento de negócios sociais inclusivos da ESPM, onde amadureceu a ideia e chegou ao formato de grupos reflexivos sobre o tema.

UM PRIMEIRO APRENDIZADO: EVITAR O ÁLCOOL COMO VÁLVULA DE ESCAPE

No final do curso de um semestre, Pedro deveria apresentar um projeto à banca avaliadora. Assim, organizou as primeiras rodas de conversa que serviriam como o MVP do Memoh. 

Atrás de pluralidade, ele chamou, para a primeira roda experimental, dez amigos (homens) de lugares, origens e posicionamentos políticos distintos. Marcou às 19 horas; a conversa rendeu até 3h. “Deu tão certo que rolou uma catarse coletiva…” 

O único equívoco, diz, foi ter levado bebida para a roda:

“Comprei umas cervejas para criar esse clima meio de bar, de papo informal… Foi um erro, acabamos usando dessa válvula de escape comum a nós, homens: beber para conseguir falar sobre sentimentos”

A partir dali, Pedro estipulou a proibição de álcool nas conversas. “É importante as pessoas estarem ali 100% sóbrias, tanto para falar quanto para ouvir.”

AS MULHERES E PESSOAS LGBT REAGIRAM COM UMA SAUDÁVEL DESCONFIANÇA

Para testar a aceitação da proposta, Pedro tinha agendado uma segunda roda, para o dia seguinte, apenas com mulheres e pessoas LGBT+.

Aí, a recepção foi outra, bem menos calorosa. 

“Essa galera foi um pouco mais dura comigo… Quando as mulheres viram que era um homem, branco, hétero, morador da Zona Sul do Rio querendo falar sobre equidade de gênero, elas ficaram com o pé atrás — e com razão”

Essa desconfiança, diz Pedro, se fazia necessária. 

“Foi ótimo rolar esse estranhamento, porque elas estavam ali pegando cada ‘vírgula’ do que eu falava, o que foi fundamental para o processo de transformação da minha linguagem… Ajudou a me situar e a melhorar o projeto.”

Com o conceito validado por públicos distintos, ele sentiu que era hora de tocar o negócio. E assim nascia o Memoh, com um investimento pessoal de 10 mil reais para criar a marca.

PERMITIR A CRIAÇÃO DE GRUPOS INDEPENDENTES AUMENTOU A CAPILARIDADE

No segundo semestre de 2017, o Memoh já tinha dois grupos reflexivos. Em 2018, eram três. E em, 2019, seis grupos simultâneos se encontravam no Rio e em São Paulo.

Apesar de comemorar o crescimento (a meta era chegar a 18 grupos), Pedro diz que estava ficando maluco para acompanhar cada um, gastando mais tempo nisso do que em desenvolver o trabalho e se aprofundar nos estudos.

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A solução foi abrir a metodologia. Ele organizou uma formação e usou o podcast do Memoh para tornar público o passo a passo de como montar um grupo reflexivo.

Assim, foram criados dez novos grupos independentes (em estados como Minas, Pará e Rio Grande do Sul). 

“Esse número [de grupos independentes] vai aumentando sem a gente saber do impacto que está causando, o que mostra que a proposta está crescendo organicamente”

Em paralelo, o Memoh manteve, sob seu guarda-chuva, três grupos do Rio e de São Paulo.

POR DENTRO DA METODOLOGIA DOS GRUPOS DO MEMOH

A Lei Maria da Penha prevê dois encaminhamentos para agressores de mulheres: prisão ou participação em grupos reflexivos de gênero.

Pedro diz que desenvolveu a metodologia do Memoh seguindo os princípios do Instituto Noos para criar esse tipo de grupo. Chegou a um formato de encontros quinzenais (e gratuitos), com duas horas e meia de duração, reunindo até 20 homens ao longo de um semestre.

Ao final de cada encontro, é definida uma prática para que os homens coloquem em ação o que discutiram. Em um grupo, por exemplo, eles criaram uma rede de cuidados para ajudar na rotina diária de outros homens.

Os grupos reflexivos do Memoh se encontram a cada 15 dias ao longo de um semestre.

Uma figura-chave é o “líder da rodada”, que muda a cada encontro (sempre um participante do grupo) e se dispõe a trazer um tema, em formato de pergunta, a ser debatido.

“Esse líder fica com a missão de montar uma apresentação como um disparador de conversa, trazendo uma questão dele e, assim, se vulnerabilizando para o grupo.”

Exemplos de temas: Como a ausência da figura paterna afeta nosso desenvolvimento enquanto homens?, Por que mesmo quando precisamos é tão difícil pedir ajuda? e Por que os homens ainda têm medo do feminismo?

Outra figura-chave é o caseiro, ou facilitador. São dois por grupo, ocupando as posições ao longo de todo o semestre. 

“São participantes que organizam os encontros, checam se está faltando alguém, se o líder preparou a apresentação, se alguém vai atrasar…”

COMO SE MEDE A EVOLUÇÃO DOS HOMENS IMPACTADOS PELO MEMOH?

É impossível garantir que um homem deixará se ser machista só por participar das atividades do Memoh. Como lembra Pedro, o problema é profundo, estrutural.

“Não será em um ciclo de encontros que ele vai concluir um ‘check-list de homem desconstruído’. A gente luta para chegar lá, mas entendendo que essa caminhada é longa.”

Para avaliar essa evolução, o Memoh tem o apoio da Wonderboom, uma empresa de pesquisas composta só por mulheres.

“A gente brinca que o Memoh tem um KPI invertido. Nessa pesquisa, questionamos, antes e depois do encontro, se o homem se considera machista — e o número dos que se consideram é sempre maior no final”

Não basta autodeclarar-se transformado. A pesquisa ouve pessoas do convívio dos participantes. 

“Recebemos relatos de mães, companheiras, amigas, colegas de trabalho mostrando como o homem mudou sua visão, o diálogo em casa, sua relação afetiva com outros homens…”

CONVENCER EMPRESAS A ENVOLVER OS HOMENS NO DEBATE É UM DESAFIO

O Memoh aposta no modelo de subsídio cruzado: a oferta gratuita, para pessoas físicas, a formação e o acompanhamento de grupos reflexivos (além de produção de conteúdo) é custeada pela venda de serviços a empresas.

Um desafio é fazer as organizações entenderem a necessidade de envolver os homens nessas discussões.

“A importância de trabalhar [questões de gênero] com mulheres já é algo estabelecido nas empresas. Mas, para homens, há uma barreira de entrada. As pessoas na alta liderança são homens, e quando inserimos esses caras como parte do problema fica um pouco difícil, porque eles não se enxergam dessa forma”

O Memoh oferece seis serviços: eventos com um papo aberto sobre masculinidade; rodas de conversas; orientação de como formar grupos nas empresas (Memoh DIY); workshops e programas de liderança (são dois serviços com duração diferentes e o mesmo propósito de acelerar a transformação da cultura organizacional); e consultorias personalizadas.

NO ESCRITÓRIO, O MEMOH PAUTA CONVERSAS SOBRE GAYS, PATERNIDADE E SUICÍDIO

O portfólio de cases tem projetos com três dezenas de marcas, como Bosch, Coca-Cola, Vale, Facebook e Klabin. As duas últimas são clientes recorrentes. 

Para a rede social, o Memoh organizou uma série de rodas de conversa: 

“No mês do Orgulho LGBT, discutimos a relação de homens héteros com homossexuais. Em agosto, eles aproveitaram para falar de paternidade. Em setembro abordaram como pedir ajuda — já que é o mês de prevenção ao suicídio e esses índices são maiores entre homens”

Junto à Klabin, o Memoh realiza hoje um programa de desenvolvimento de lideranças, com duração de seis meses. Em outra ocasião, estimulou a criação de grupos de WhatsApp, entre os colaboradores da empresa de papel e celulose, para discutir paternidade.

“Os homens têm grupo para falar de tudo, inclusive pornografia… Mas para falar sobre essas questões, não existe nenhum”.

A PANDEMIA ESCANCAROU A DESIGUALDADE DE GÊNERO E A CARGA MENTAL

O coronavírus vem acirrando a desigualdade de gênero e os casos de violência doméstica. Pedro, porém, acha que a crise pode despertar os homens para a mudança.

“A diferença no tempo que a mulher investe no cuidado da casa, dos filhos e familiares versus o que o homem se dedica ficou escancarada”, diz. “Digo por mim, na minha casa houve conflitos com a divisão das tarefas… Depois ajustamos, mas ainda me sinto em dívida com a minha companheira. A carga mental que ela carrega é muito grande.”

A Covid-19 forçou o Memoh a repensar as atividades. Antes, tudo era presencial.

“O primeiro encontro foi na sala da minha casa, mas já fizemos no Nex Coworking, no Circo Voador, em um [salão de] barbeiro, em uma agência de propaganda…”

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Com a pandemia, Pedro se questionou se os grupos funcionariam no online — e diz que os próprios participantes pediram que os encontros continuassem. 

Para as empresas, ele ajustou os conteúdos e a duração de cada serviço ao Zoom. O online trouxe ganhos: no trabalho com a Klabin, o Memoh passou a atingir gerentes de localidades como Jundiaí (SP), Feira de Santana (BA) e Telêmaco Borba (PA).

“Acabamos alcançando, nos grupos reflexivos, homens de outros locais do Brasil, trazendo diferentes masculinidades impactadas pela regionalidade…” 

Aos interessados em participar dos grupos reflexivos gratuitos: os próximos serão abertos no começo de 2021 (o início de cada ciclo é comunicado no instagram: @projeto.memoh).

“Os homens que querem participar dos grupos devem entrar sem julgar e sem medo de serem julgados, e devem estar abertos para trocar com homens diversos”, diz Pedro. “Eles devem estar dispostos a refletir em conjunto, sobre seu comportamento consigo, com o outro e com a sociedade, sempre na busca pela equidade de gênero.”

DRAFT CARD

Draft Card Logo
  • Projeto: Memoh
  • O que faz: Debate sobre masculinidades em grupos reflexivos e em empresas
  • Sócio(s): Pedro de Figueiredo
  • Funcionários: 2
  • Sede: Rio de Janeiro e São Paulo
  • Início das atividades: 2017
  • Investimento inicial: R$ 10 mil
  • Faturamento: Não informado
  • Contato: [email protected]
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