O Brasil tem uma população de aproximadamente 300 mil pessoas com síndrome de Down, de acordo com o último Censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Dentre as características dessa condição descritas pelo banco de dados internacionais Orphanet estão: fissuras palpebrais inclinadas para cima, epicanto, pescoço curto, face redonda, nariz pequeno e prega palmar única bilateral.
O site de referência médica não diz nada a respeito da cor da pele, mas, ainda assim, há quem acredite que essa é uma condição genética exclusiva de indivíduos brancos.
“Achei centenas de internautas dizendo que nunca tinham visto negros com síndrome de Down ou que achavam que as pessoas negras eram imunes à essa síndrome”, afirma Thiago Ribeiro, fotógrafo documentarista e fundador do Instituto InvisibiliDOWN, que tem por objetivo promover a garantia de direitos e dignidade por meio de parcerias, iniciativas e projetos focados em pessoas negras com síndrome de Down.
Thiago começou a se aprofundar a respeito da alteração genética depois que, em 2019, recebeu a notícia do diagnóstico do seu filho recém-nascido. Foi nessa época que se deparou com aqueles comentários absurdos na internet.
Ativista pelos direitos humanos, estudioso de pautas raciais e acostumado, infelizmente, à negligência vivenciada pela comunidade negra no Brasil, Thiago diz que não ficou exatamente surpreso com o teor dos comentários. Mesmo assim, ter a dimensão da ignorância em torno do tema acendeu um alerta para a invisibilidade das pessoas negras com a síndrome.
Ele passou a divulgar pesquisas, dados e estudos com o recorte racial. Seu esforço ganhou atenção com a publicação de uma série de dez fotos do seu filho Noah em sua conta no Instagram. A repercussão foi tamanha que levou o ensaio a participar de uma exposição coletiva no Museu do Amanhã, no Rio de Janeiro; da 36ª Feira do Livro de Brasília, no Distrito Federal; e da Semana Nacional da Pessoa com Deficiência Intelectual e Múltipla de São Carlos, no interior do estado de São Paulo.
O trabalho também foi premiado como um dos 50 melhores projetos documentais da América Latina em 2022 pela Latin American Photography Foundation, além de ser reconhecido no Prêmio Talentos da Diversidade 2022, no Prêmio Pretas Potências 2023 e no Prêmio Cultura Viva e Espaços Culturais 2024, pela Lei Paulo Gustavo, na cidade de São Paulo.
Mesmo com esse destaque, Thiago sabe que ainda há muito a ser feito a fim de transformar a situação de invisibilidades das pessoas negras com síndrome de Down. Em entrevista ao Draft, ele fala sobre sua jornada:
Como o nascimento do seu filho inspirou a criação do projeto fotográfico?
Noah nasceu em novembro de 2019, alguns meses antes de dar aquele boom da pandemia. E aí, depois do parto, me chamaram para uma sala e começaram a fazer um monte de perguntas, como se tinha alguém na família com os olhos puxados… Achei estranho.
Depois de fazerem alguns questionamentos, os médicos me explicaram que tinham uma suspeita de síndrome de Down. Foi aquele choque!
Naquele dia, eu tinha feito três fotos do meu filho com o celular. Lembro que, depois da notícia, peguei o aparelho, fiquei olhando as fotos e achei que parecia mesmo ter alguma coisa diferente, mas acho que isso foi mais uma sensação do que uma percepção de algo diferente de fato.
Eu entrei nesse processo de ficar pesquisando e pesquisando sobre síndrome de Down para entender essa nova realidade que estava sendo imposta para nós ali.
E foi lendo os comentários em conteúdos sobre síndrome de Down que você notou a invisibilidade das pessoas negras também nessa condição?
Eu sempre soube que existiam pessoas negras com síndrome de Down porque eu tinha um primo assim. Por isso, para mim foi chocante quando, nessas pesquisas, comecei a ver que muita gente achava que não existiam negros com essa condição genética.
Nessas buscas, achei uma matéria sobre invisibilidade de pessoas negras com síndrome de Down, mas em um contexto mais de publicidade, de televisão… E, de fato, nós não vemos essas pessoas na mídia, não é?
Nos comentários dessa matéria, achei centenas de internautas dizendo que nunca tinham visto negros com síndrome de Down ou que achavam que as pessoas negras eram imunes à essa síndrome.
Assim, fui percebendo que tinha camadas muito mais profundas do que “simplesmente” a questão da deficiência. Mais uma vez, tinha a questão racial.
O projeto fotográfico surge como uma iniciativa de combater mais essa invisibilidade imposta à população negra?
O projeto fotográfico vem alguns meses depois que comecei a pesquisar sobre a síndrome de Down com recorte racial e achei pouquíssimo conteúdo aqui no Brasil. Fora do nosso país, eu já achei mais conteúdos sobre a saúde da população negra com síndrome de Down.
Entre os diversos dados que encontrei, o mais chocante foi sobre a expectativa de vida, que para pessoas negras com a síndrome chega a ser até 50% inferior à expectativa de pessoas brancas com a mesma condição
Nesse estudo, os pesquisadores tentavam entender o que acontecia, o porquê dessa diferença uma vez que era tudo igual entre brancos e negros, não havia nenhuma diferença por conta específica da alteração genética em um e outro.
A única diferença era a falta de acesso ao serviço de saúde de qualidade, a falta de acesso às terapias que essas pessoas precisam para se desenvolver desde o começo da vida… O Noah, por exemplo, começou as terapias com três meses.
Dentro desse contexto, comecei a pensar em fazer alguma coisa para falar sobre invisibilidade através da fotografia. Foi aí que comecei a procurar famílias negras com síndrome de Down no Brasil.
Como eu estava compartilhando nas redes sociais o desenvolvimento do Noah e fazendo posts questionando a invisibilidade dentro dessa esfera, muitas famílias negras começaram a achar o meu perfil.
Ao longo de 2021, entrei em contato e cadastrei mais ou menos 90 famílias. Hoje, são mais de 150 no banco de dados do InvisibiliDOWN. A ideia era fotografar cada uma dessas famílias, fazer registros, documentar — e transformar isso em alguma coisa maior
Pensei em uma exposição ou algo do tipo. Ocorre que eu não tinha recurso para viajar pelo Brasil inteiro e fazer fotos de todo mundo, consegui fotografar cinco famílias na cidade de São Paulo. Um projeto de dimensão nacional depende de patrocínio, de recurso público e ninguém se interessou na época.
Nesse período, eu tinha comprado uma lente nova. Como estava responsável pelos cuidados do Noah durante o dia, fui testando a lente fotografando meu filho e guardando tudo no drive para olhar depois com calma. Quando eu fui ver as fotos, achei que daria para fazer algo com elas.
Foi assim que surgiu uma série fotográfica de dez imagens que são fragmentos do Noah: um pézinho, uma mãozinha, partes que você não identifica que é uma criança com síndrome de Down. Só na última foto dessa série eu revelo o rostinho dele e aí dá para ver que é uma criança negra com síndrome de Down
Acabou que essa série deu muito certo! As pessoas começaram a me procurar tanto pelo trabalho fotográfico, quanto pela narrativa que eu estava propondo sobre essas discussões relacionadas ao acesso das famílias negras ao serviço de saúde, às terapias e o quanto, em geral, elas são mais prejudicadas nesse aspecto. O projeto fotográfico surgiu disso.
Como está sendo a evolução do seu projeto fotográfico para o que hoje é o Instituto InvisibiliDOWN?
O Instituto ainda está em fase de formalização. Lá atrás, eu não tinha o desejo de fundar um instituto nem nada, mas as pessoas começaram a procurar o InvisibiliDOWN nas redes sociais tratando já como se fosse uma organização, procurando informações sobre o tema.
Me chamavam para eventos e até me procuravam perguntando se precisávamos de voluntários no projeto… Foi aí que comecei a sentir que o caminho natural era evoluir para um instituto.
Hoje, qual é a missão do instituto?
Ainda estou trabalhando para fotografar todas as famílias negras com pessoas que têm síndrome de Down, mas o objetivo maior é trazer para o debate essas questões todas em torno da deficiência no contexto racial brasileiro.
Eu já era um ativista pelos Direitos Humanos, com foco em questões sociais e população negra, mas discutindo temáticas gerais relacionadas aos grupos vulneráveis. A chegada do Noah deu um sentido novo nessa luta. Então, decidi direcionar a minha energia para isso
Sempre tive consciência de que o meu filho nunca vai poder fazer os enfrentamentos que ele precisaria para garantir os próprios direitos da forma como eu posso, por isso, a importância de fazer esse trabalho por ele e outras tantas pessoas negras com síndrome de Down.
Além das fotografias, o que mais contribui para esse processo de transformação?
Quando vi aqueles comentários na matéria dizendo que pessoas negras são “imunes” à síndrome de Down, já liguei meu radar e pensei “tem questão racial envolvida aqui, não é só sobre deficiência”. Uma das preocupações que passei a ter foi a questão do conhecimento, na verdade, da falta de acesso a informações de qualidade.
Saber filtrar informações é um privilégio, ter acesso a conteúdo de qualidade é um privilégio. Fiquei pensando em famílias da periferia ou com pouco estudo e como elas se sentiam ao se deparar com informações falsas como essa de que não existem pessoas negras com síndrome de Down.
Isso me fez ter mais vontade de levantar essa bandeira, de levar informação de qualidade para as famílias negras com pessoas que têm síndrome de Down
Considerando a realidade das famílias negras no Brasil, o Noah é uma criança privilegiada em alguns aspectos. A mãe dele é da área da saúde, eu tenho estudo, então, ele está bem acolhido nesse contexto. Nós temos condição de buscar informações.
Algo que me chamou a atenção quando, lá atrás, comecei a pesquisar sobre síndrome de Down foi que encontrei organizações afirmando que existem menos pessoas negras com essa alteração genética, que ela era mais rara na população negra. Conforme fui aprofundando as minhas leituras, descobri que esse é um mito gigantesco.
A incidência de nascimento de crianças com síndrome de Down é proporcional ao tamanho das populações. Então, se no Brasil temos uma população com praticamente metade brancos e metade negros, temos uma configuração muito parecida na população com síndrome de Down.
Quando alguém diz que nunca viu uma pessoa negra com essa síndrome, não é que isso seja raro. Você não vê porque esse grupo é invisibilizado, porque esses indivíduos estão morrendo antes de ter acesso às terapias e outros tratamentos fundamentais para garantir maior expectativa de vida
Eu estudo muito esse assunto e o que percebi nesses quatro anos do Noah é que a raça dele vem antes da síndrome, da deficiência. Quem está olhando para ele enxerga primeiro uma criança negra e, depois, percebe uma deficiência. Disso vem a falta de acolhimento, a desinformação.
De que forma você ajuda a divulgar informações de qualidade?
Comecei a compartilhar as informações nas minhas redes sociais por conta própria, porque já era um ativista. Isso veio da dificuldade que eu tinha de encontrar informações sobre as especificidades da condição do meu filho.
Quando eu buscava tais informações e tinha dificuldade para encontrá-las, mesmo consultando fontes de outros países e em outro idioma, pensava nas outras famílias que tinham um acesso mais restrito. Se esse acesso era difícil para mim, imagine para elas!
Esse caminho me levou para compartilhar informações nas minhas redes. Também reuni toda a minha pesquisa ao longo de três anos no ebook Racismo Inclusivo – disparidades raciais na síndrome de Down, que é possível baixar no meu site.
Além disso, criei um grupo no WhatsApp com 50 famílias, por meio do qual divulgo informações que encontro, compartilho dados, enfim, fazemos trocas sobre o assunto.
O que ainda precisa ser feito para avançarmos nessa questão da invisibilidade das pessoas negras com síndrome de Down?Precisamos sair das diferentes bolhas. No ativismo negro, temos uma dificuldade grande de falar para pessoas diferentes, estamos sempre falando para nós mesmos. O discurso fica muito fechado.
Temos que falar com pessoas brancas sobre essa temática, ao mesmo tempo em que as pessoas brancas também precisam sair das suas bolhas.
Há também a necessidade do maior cuidado com a informação, desde aquelas falsas sobre pessoas negras com síndrome de Down até as mais práticas, informando as famílias sobre a questão das terapias, por exemplo.
Além disso, tem a questão da inclusão no ambiente escolar. Por exemplo, como os cuidadores tratam essa criança com síndrome de Down que também é uma criança negra.
Tento alertar sobre isso trazendo a minha própria realidade de quando fui criança. Lembro de sofrer racismo, de ser chamado de macaco, de apanhar… Então, se já existe esse desafio no ambiente escolar para crianças negras, como fica quando ainda existe uma deficiência?
Dependendo das particularidades da deficiência, essa criança não consegue se defender, não consegue falar, reclamar. Por isso, temos que chamar a atenção dos adultos, dos responsáveis por esse cuidado a fim de garantir a segurança e o bem estar dos nossos filhos.
Temos que levar sempre essa perspectiva do cuidado para toda a sociedade e para os responsáveis pelas tomadas de decisões, políticos, gestores públicos, de saúde… É bonito fazer o discurso de que crianças com deficiência são especiais, de que somos todos humanos, mas tem humanos sem acesso a saúde, segurança, cuidado.
Quais são os seus planos futuros?
Quero continuar o trabalho de fazer o registro das famílias negras com membros que têm síndrome de Down e minha expectativa é expandir essa ação para fora do Brasil. Acessar a invisibilidade em outros países.
Além disso, tenho a intenção de fazer um projeto fotografando pessoas indígenas com síndrome de Down
Também queremos expandir o acolhimento para as famílias, organizando eventos, reuniões e outros formatos para a disseminação de conteúdo de qualidade.
Depois dessa jornada de anos, você já percebeu alguma transformação? Alguma mudança, por exemplo, nos comentários nas redes sociais sobre pessoas negras com síndrome de Down?
Eu acho que mudaram, mas muito por conta da conscientização e das parcerias do InvisibiliDOWN com outras organizações. Para mim, era importante que essas organizações comprassem o discurso que eu estava propondo e amplificassem isso.
Hoje, percebo que os comentários estão mais na linha do “nossa, eu não sabia disso” ou “pôxa, agora eu entendo porque não via pessoas negras com síndrome de Down”. Então, não são mais esses comentários ignorantes afirmando que não existem pessoas negras com síndrome de Down ou que nascem menos pessoas negras com a condição.
Teve uma mudança significativa também no resultado da busca de imagens. Quando comecei a fazer as buscas, lá atrás, quando o Noah nasceu, quase não encontrava imagens de pessoas negras com síndrome de Down. Hoje, quando pesquiso, aparecem mais imagens e mais informações confiáveis
Então, teve uma mudança significativa. Reclamamos da situação porque temos pressa em ter resultados, mas não dá para negar que conquistamos resultados muito expressivos em pouquíssimo tempo.
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