O caminho que eu percorri para chegar onde estou hoje – diretora comercial de uma grande empresa e investidora na maior Venture Capital da América Latina – não foi nada fácil.
Precisei de muita força de vontade e perspicácia para desviar dos obstáculos que a sociedade costuma impor para pessoas como eu: mulher, preta e de origem periférica
Acreditando que a minha trajetória de vida poderia servir como um lembrete de que independentemente da sua cor, origem ou circunstâncias, é possível “furar a bolha” e conquistar o que antes parecia inatingível, escrevi o livro Furei a Bolha, onde relato tudo que aconteceu comigo, desde a infância até os dias atuais.
Nasci na periferia da zona norte da cidade de São Paulo, onde morei até os 5 anos de idade em uma casa que ficava nos fundos de um terreno dos meus avós maternos. Lá, convivi com meus avós, tias e primos, como em uma comunidade. Por isso mesmo, costumava chamar o local de “quilombo”.
Apesar de sermos felizes, meu pai, minha mãe, meu irmão e eu ansiávamos por ter um lugar para chamar de nosso. O que conseguimos – por um breve período
Compramos uma casa no bairro do Cambuci, mas meu pai não pôde arcar com as prestações. Para não perder o dinheiro do investimento, ele fez um acordo com seu chefe: duas máquinas de sorvete das quais ele queria se desfazer em troca da dívida da casa.
Posteriormente, alugamos um local, no bairro da Casa Verde, para abrirmos a nossa sorveteria. Enquanto esperávamos uma nova oportunidade para voltarmos ao “quilombo”, chegamos a residir, por nove meses, no fundo da sorveteria.
No tempo que morei no Cambuci, lembro que sofria racismo durante as brincadeiras com as crianças. A gente gostava de imitar o “Xou da Xuxa”, que estava no auge na época, e eu sempre ficava de fora, com a alegação de que não existia paquita preta…
Com medo de que episódios como este se repetissem, meus pais tentavam proteger meu irmão e eu, buscando evitar determinadas situações.
Mas eu nunca liguei de ser a “figurinha premiada”, a única preta no meio de brancos. Mesmo sem ter isso muito elaborado dentro de mim, eu resistia em ser “deixada no meu lugar”.
O berço evangélico batista, onde praticamente nasci, teve um papel muito importante no fortalecimento dessa visão de que não precisaria necessariamente ficar restrita aos limites da periferia.
Na igreja, convivi com pessoas de classe social diferentes da minha que serviram como exemplo de uma vida que até então eu não conhecia. Meu radar foi ampliado, deixando mais evidente que eu poderia ser mais.
Além disso, o fato de nossa família ser muito bem tratada por todos da congregação – e eu, particularmente, várias vezes ser elogiada pela minha aparência (cor de pele e cabelo) –, fez com que minha autoestima se desenvolvesse, assim como minha autoconfiança
Acredito que a convivência na igreja tenha sido o primeiro empurrão que precisava para me tornar bem-sucedida.
A nova realidade descortinada dentro da igreja me impulsionou a buscar uma vaga de emprego que mudaria minha vida para sempre.
Na época, eu estava trabalhando em duas empresas como operadora de telemarketing e fiquei sabendo de uma oportunidade numa companhia de informativos tributários, precursora e líder de mercado.
A empresa era bem maior – e o salário, também. Para conquistar o emprego, coloquei em prática toda a minha coragem e ousadia. A concorrência para a vaga ainda não tinha sido aberta, mas com muita “cara de pau”, consegui ser entrevistada mesmo assim. Minha experiência contou bastante e fui aprovada
Nessa nova empresa, logo me destaquei. Fiz todos os cursos de aperfeiçoamento que me ofereceram e passei a dominar a linguagem técnica do negócio.
Além disso, fiquei hábil em técnica de vendas, o que propiciou com que eu tivesse um alto desempenho em fazer clientes e converter vendas. Como resultado, acabei sendo alçada à posição de key account, para atuar como vendedora externa premium.
Para obter essa promoção foi de suma importância a minha autoconfiança e carisma que me permitiram desenvolver uma relação de igual para igual com minha superiora hierárquica. Foi ela que acreditou em mim e me inscreveu para uma vaga que, a priori, eu não tinha as qualificações necessárias para entrar.
Os resultados que demonstrei como vendedora externa chamaram a atenção de uma outra empresa de menor porte da área de informe tributário chamada Fiscosoft.
Em um primeiro momento, a escassez passada durante a juventude falou mais alto e titubeei ante a nova oportunidade, receando trocar a estabilidade e conforto conquistados a duras penas por talvez uma aventura.
Nesse ponto, foi de grande importância as sessões de psicanálise que passei a frequentar e que permitiram me conhecer mais a fundo
A partir de uma pergunta-provocação da minha terapeuta: “Thais, o que pior pode acontecer na sua vida?”, eu encontrei força e determinação para superar o medo e aceitar o cargo nesta empresa, que, se era menor do que aquela onde estava, abria a possibilidade de alçar voos maiores na carreira.
Nesse período de ascensão profissional, tudo mudou. Cursei e concluí duas graduações (em administração e marketing), o que não havia conseguido fazer logo que comecei minha vida profissional por falta de condições financeiras. Além disso, fiz um MBA em Gestão Estratégica de Negócios.
Conheci novas pessoas e fui despertada para novos interesses. Como consequência meu casamento terminou. Eu era uma pessoa diferente, estava infeliz – e a terapia me ajudou a perceber isso
Fui a primeira da minha família a conquistar títulos acadêmicos e do mesmo modo a primeira a se divorciar.
Foi um período conturbado na minha vida, sozinha com dois filhos para cuidar, mas no final tudo se ajeitou.
Se na vida pessoal, eu passava por turbulências, na vida profissional eu seguia em velocidade de cruzeiro.
Acabei me tornando sócia na Systax, empresa que sucedeu a Fiscosoft, onde após uma cisão e venda da empresa, eu virei diretora comercial e de marketing, posição que ocupo até hoje.
Em certo momento, numa imersão de autoconhecimento, estreitei laços com a Carol Paiffer, presidente e diretora da área de Investimentos da Atom. Ela me apresentou a João Kepler, fundador da Bossa Invest. Foi aí que eu adentrei o mundo dos investimentos. Concomitantemente, me tornei palestrante e mentora de startups
Inicialmente, foquei minha atuação em novos empreendimentos cujos proprietários tinham um certo perfil: eram pessoas de classe média, com conhecimento prévio sobre a montagem de um negócio e que precisavam de um montante relativamente elevado para crescerem.
Mas um dia, após ministrar uma palestra no espaço do Momento Crescer, localizado em Guaianases, na Zona Leste da capital paulista, resolvi alterar o foco dos meus investimentos, passando a investir meu tempo e dinheiro na base periférica.
Durante o encontro, ouvindo as demandas daquelas mulheres, que grande parte das vezes precisam somente de uma pequena quantia para escalarem seus negócios, eu me lembrei da minha família…
Minha mãe chegou a complementar a renda fazendo e vendendo bala de coco e “gelinho” e minha tia, até hoje, vende cândida de porta em porta e faz bolo para fora. Por causa dessa veia empreendedora, nunca ninguém deixou de comer lá em casa. As histórias daquelas mulheres me marcaram profundamente e resolvi ajudá-las
Para tanto, também me associei ao EllaImpacta, iniciativa global, originada na ONU, cuja missão principal é destinar capital em larga escala e ritmo acelerado para mulheres empreendedoras periféricas. Além disso, atuo como mentora da Claudia Luzia, fundadora e líder do programa Momento Crescer, a fim de replicar meus conhecimentos e ajudar as participantes do projeto.
Fazem parte dos meus planos, em curto prazo, promover iniciativas com o G10 Favelas (grupo de líderes e empreendedores que buscam o desenvolvimento econômico e social das favelas brasileiras) e com o Mães Pretas (Comunidades de Mães Negras do Brasil).
Quando era menina lá no “quilombo”, sonhava em ter filhos, um carro para viajar até a praia e uma casa própria, mesmo que precisasse financiá-la em 50 anos.
Hoje, consegui muito mais do que isso. E, apesar de me sentir realizada, acredito que não seja o bastante. Eu preciso que a minha trajetória inspire outras mulheres
Por isso escrevi o livro Furei a Bolha – Saia do automático, rompa padrões e reprograme seu destino, publicado pela Trend Editora. Por isso, também, o meu trabalho como mentora, palestrante e investidora.
Nos moldes da pergunta-provocação formulada pela minha terapeuta, eu encorajo as leitoras deste artigo a se indagarem: “O que de melhor pode me acontecer?”.
A resposta para esse questionamento será o incentivo que falta para, assim como eu, “furarem suas bolhas” sociais e econômicas e viverem uma vida digna e muito diferente do que a sociedade determinou para elas.
Thaís Borges, 44, é diretora comercial da Systax, empresa a qual foi sócia, mentora e conselheira de startups, investidora-anjo, líder de comitê na Bossanova Investimentos, e co-fundadora da Growth Gate e do instituto EllaImpacta, que apoia mulheres empreendedoras e em situação de vulnerabilidade. Além disso, é associada-conselheira do Instituto Êxito de Empreendedorismo e head de startups e empreendedorismo na Associação Nacional de Executivos (Anefac).
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