Rubens Amatto, da Casa de Francisca, conta como é ter um negócio que virou um sucesso antes de ser um sucesso

João Prata - 21 nov 2017Rubens Amatto conta como a Casa de Francisca nasceu sem planejamento, cresceu pela força de sua proposta e agora vive uma nova fase.
Rubens Amatto conta como a Casa de Francisca nasceu sem planejamento, cresceu pela força de sua proposta e agora vive uma nova fase (foto: Katia Kuwabara).
João Prata - 21 nov 2017
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Não via o Rubens Amatto desde os tempos de escola. Na verdade, nos tempos de escola, quando tinha uns 12 e ele uns 14 anos, nem sabia que ele se chamava Rubens Amatto. Quando combinamos a entrevista para falar sobre a Casa de Francisca — uma casa de show de personalidade única, que começou num espaço exíguo e hoje está num palacete no centro da capital paulista — eu não fazia ideia que o Rubens Amatto era aquele Rubens Amatto. Imaginava um Rubens Amatto gordo, amante da boa gastronomia e que os acasos da vida o tivessem levado ao mundo da música.

Pensava, também, encontrar um empreendedor contando que os dez anos iniciais de seu negócio haviam lhe rendido um bom pé de meia e que, agora, de mudança para um local mais amplo, iria se consolidar como um dos grandes empresários da noite paulistana. Qual o quê!

Ao chegar para a entrevista, me sentei em uma das mesas do amplo salão do Palacete Tereza, casa histórica no centro de São Paulo, com janelões do chão até o teto que dispensam ar condicionado. Esperei um pouco pela chegada de Rubens. O local respira música há muitas décadas. Ali funcionou a Rádio Record, na primeira metade do século passado. Desses mesmos janelões, o Repórter Esso fazia transmissões ao vivo, virado para a rua, com notícias sobre a Segunda Guerra Mundial. O povo se apinhava na calçada para ver e ouvir o locutor.

Ná Ozzetti, em apresentação na (nova) Casa de Francisca, que ficou maior e agora serve almoço durante o dia: é o que ajuda a fechar as contas.

Ná Ozzetti, em apresentação na (nova) Casa de Francisca, que ficou maior e agora serve almoço durante o dia: é o que ajuda a fechar as contas.

Mas, voltando. O Rubens Amatto, hoje com 38 anos, não é nada daquilo que eu imaginava. Magro, barba e cabelo pretos, rosto familiar. Alguns segundos depois de nos cumprimentarmos, lembramos de ter feito o ensino fundamental no mesmo colégio. Fiquei travado por um instante. Então era ele que estava esse tempo todo por trás da Casa de Francisca, um espaço de música independente que sempre admirei, que cheguei a frequentar, que acompanhava os passos de longe.

Desde fevereiro deste ano, a Casa de Francisca deixou de ser a autodenominada “menor casa de shows de São Paulo”, com capacidade para apenas 44 pessoas, situada nos Jardins, para se estabelecer no centro histórico da capital paulista. Na conversa que se seguiu, fiquei sabendo que a mudança de local pode finalmente ajudar a tornar o projeto mais viável financeiramente. Descobri, também, que o Rubens ainda não consegue se dedicar exclusivamente ao projeto de sua vida — e precisa trabalhar como artista gráfico para pagar as contas no final do mês.

Rubens nunca foi empresário e diz que até hoje não aprendeu a mexer em planilhas de Excel. Quando conta sua história, fica bem claro que a vocação para administrar gastos não foi prioridade. Tanto é que só recentemente convidou a Fernanda Pereira, 35, para se tornar sócia (há cerca de oito anos ela trabalha na administração da Casa). Mas isso aconteceu muito depois do primeiro insight que o colocaria na posição de empreendedor do ramo artístico paulistano. A ideia de criar a Casa de Francisca começou por volta de 2002 quando, ainda estudante de Rádio e TV, foi visitar o amigo (e futuro ex-sócio) Rodrigo Luz na Espanha.

“Cheguei à noite em Barcelona morto de fome e o Rodrigo me levou até um quiosque de falafel nas Ramblas (centro turístico da cidade). Quando sentei para comer e me deparei com aquela cidade pulsando, com pessoas de todos os tipos nas ruas, me dei conta de como São Paulo era impessoal, de como por aqui as coisas surgiam com olhar apenas para os números. Enquanto comia, comentei com o Rodrigo que precisávamos fazer algo nosso em São Paulo”, conta.

UMA IDEIA ANTIGA VOLTA, UM LP APARECE, UMA CASINHA É ENCONTRADA

A ideia ficou no ar e a dupla não tocou mais no assunto. Rubens voltou ao Brasil depois de um mês e retomou a rotina de realizar projetos gráficos. Trabalhava para uma editora de livros e também fazia frilas de capas de discos e pôsteres de filmes. Em um desses trabalhos, conheceu o Luiz Gê, ilustrador que havia criado a antológica capa do disco Clara Crocodilo, de Arrigo Barnabé. O LP se tornaria fundamental para a criação da Casa de Francisca: “Quando ouvi pela primeira vez, achei uma merda. Mas falavam tanto que era genial que ouvi mais vezes, até que descobri um universo fascinante e minha cabeça deu um nó. Senti aquele mesmo impacto de quando me sentei para comer o falafel em Barcelona”.

Siba na (primeira) Casa de Francisca, diante dos 44 felizardos que cabiam por noite no local.

Siba na (primeira) Casa de Francisca, diante dos 44 felizardos que cabiam por noite no local.

Por volta de 2005, o amigo Rodrigo voltou da Espanha e os dois decidiram retomar aquele papo de tornar a cidade de São Paulo menos impessoal. Ainda não sabiam direito o que poderiam fazer, mas o primeiro passo foi encontrar uma casa onde pudessem se inspirar para criar algo. Passaram a percorrer a cidade de bicicleta por um tempo, até que Rubens encontrou uma casa abandonada nos Jardins que tinha aluguel em conta, na época uns 600 reais, ele calcula. A Casa estava sem janela, sem porta, o piso detonado.

O pouco dinheiro que ganhavam não daria para a reforma. Por isso, pegaram a marreta, a pá, a escada, o cimento e tudo mais e a dupla de sócios mesmo é que tocou a obra. Também tornaram-se frequentadores assíduos de casas de demolição, onde garimparam boa parte da decoração. Depois de um ano, no final de 2006, com a obra ainda inacabada, eles precisavam inaugurar o lugar para faturar ao menos algum trocado para sair do completo prejuízo. Convidaram uns amigos para fazer o som, colocaram as cervejas para gelar em um isopor, instalaram um fogão para preparar algumas porções e  Rubens fez o convite a ser distribuído na vizinhança. Daí viria o nome do espaço:

“Na época havia muitas casas naquela região dos Jardins. Conversando com vizinhos, descobrimos que a antiga moradora se chamava Francisca”

Apesar do pouco movimento no início, Rubens e Rodrigo estavam felizes da vida com a possibilidade de receber os amigos em um lugar feito por eles, com a cara deles. Seis meses depois, Rodrigo recebeu o convite para fazer um documentário na Amazônia e se mudou para lá de mala e cuia. Rubens se viu sozinho e com a necessidade de dar uma identidade própria ao local. Não queria que a Casa de Francisca fosse “mais um barzinho de música ao vivo”.

UMA CASA DE SHOWS ONDE NÃO SE DÁ AS COSTAS PARA O ARTISTA. LITERALMENTE

Na busca por um formato novo, reparou que a mesa mais procurada pelo público era a que ocupava uma pequena varanda, onde se podia fumar e observar o movimento da rua. Como na maioria das vezes ninguém ficava prestando atenção nas bandas, optou por tirar aquela mesa e instalar o palco bem ali. Antes de consolidar a ideia, debateu com os seis amigos que o ajudavam nos afazeres noturnos sobre a mudança e ainda sugeriu que o serviço de consumo fosse interrompido durante a apresentação dos músicos. Houve uma longa discussão, porque as mudanças afetariam ainda mais um faturamento que beirava o zero, quando não dava prejuízo. Ele fala:

“Eu não queria inovar. Foi só um pouco de delicadeza, respeito e sensibilidade com o artista. O cara está se expondo, é um artesão. Virar as costas para ele é um crime”

O novo palco foi instalado, os garçons pararam de circular durante os shows e agora faltava o principal: os músicos. Rubens lembrou do Clara Crocodilo. Um belo dia, tomou coragem e convidou Arrigo Barnabé para tocar em sua Casa. O músico perguntou apenas se havia um piano. Não havia, mas Rubens escondeu esse pequeno detalhe. Saiu às pressas à procura de um que coubesse naquele espaço e também no orçamento. Encontrou um instrumento todo desmilinguido em uma ONG que recebia doações. Pagou cerca de cem reais.

O show aconteceu, o piano estava realmente horrível, mas a partir daquele momento a Casa de Francisca encontrou seu viés. Ela não precisava ter a estrutura de um espaço grandioso de espetáculos. Músicos e plateia passaram a compreender que aquela também era a casa deles. Todos ficavam à vontade para propor novas ideias, inovações.

Rodrigo voltou da Amazônia um ano depois e encontrou a Casa de Francisca já como esse ponto de encontro de músicos autorais dos mais diversos estilos. A banda Metá Metá, com Juçara Marçal (voz), Kiko Dinucci (guitarra) e Thiago França (saxofone) se formou lá, por exemplo. O rapper Criolo, antes de ganhar fama nacional, apareceu para tocar todo nervoso, de paletó, e apresentou durante alguns meses as canções do que viria a ser seu disco de maior sucesso, o Nó na Orelha. Quem disse que não existia amor em SP? Jards Macalé, Jorge Mautner, Paulo Vanzolini foram outros nomes de peso que bateram cartão na menor casa de shows da cidade.

ESTAVA TUDO SUPER CERTO. SÓ FALTAVA ALGUM DINHEIRO

O formato estava definido, os músicos haviam entendido a proposta, o público lotava o espaço, os jornalistas adoravam escrever e fotografar o local. Só faltava ganhar algum dinheiro. Em 2008, Rubens e Rodrigo decidiram fazer nova reforma mas, novamente, a falta de tino para o negócio atrapalhou. A obra deveria durar dois meses, pulou para seis e não acabava. Foi então que um dos músicos que tocava por lá sugeriu promoverem um festival para arrecadar dinheiro.

O local escolhido para receber o Primeiro Conserto da Casa de Francisca (com S mesmo) aconteceu no Teatro Oficina e contou com a presença de 60 músicos e sete horas de atrações. Todos os artistas tocaram de graça e o dinheiro arrecadado, cerca de 50 mil reais, foi doado para a conclusão da reforma.

Os sócios conseguiram otimizar o ambiente, construíram uma pequena arquibancada para receber melhor o público, mas Rubens percebeu que não teria muito jeito de seguir: o formato estava saturado. O festival abriu os olhos para o tamanho real da Casa de Francisca e começaram a surgir novas possibilidades. Aconteceram ainda dois outros Consertos até que, em 2014, ele e Rodrigo começaram a pensar na possibilidade de uma mudança de endereço, como diz:

“No fundo, a gente queria sair de uma zona de conforto e agora estamos tentando fazer que o projeto tenha vida longa”

Ele diz que no formato da antiga Casa, sabia que corria uma série de riscos de não ter mais fôlego para continuar: “Não por falta de público ou demanda, mas porque a proposta em si nunca tinha sido pensada comercialmente”. Eis aqui um ponto interessante, e comum a qualquer empreendedor que inicia um business por paixão, por motivos outros que não meramente ganhar dinheiro. Rubens fala: “Claro que a questão comercial é importante, mas antes de qualquer coisa, a mudança de lugar se deu por outros motivos. Nosso projeto tem um compromisso prioritariamente cultural e busca um diálogo e uma relação direta com a cidade”.

O Palacete Tereza, no centro da capital paulista, abriga a nova Casa de Francisca.

O Palacete Tereza, no centro da capital paulista, abriga a nova Casa de Francisca.

Ele diz isso e reforça o quanto a oportunidade de estar num local histórico do Centro de São Paulo o motivou. A mudança para o Palacete Tereza, portanto, conspirou por uma série de fatores. Primeiro pela história do lugar que, depois da Rádio Record, ainda abrigou a loja de instrumentos musicais Bevilacqua. Depois, porque os proprietários do local eram frequentadores da Casa de Francisca e ajudaram na reforma. Durante três anos, investiram na revitalização do espaço.

Nesse meio tempo, por volta de 2015, Rodrigo optou por deixar a sociedade e se mudou para o interior de São Paulo, onde hoje trabalha com marcenaria. Rubens seguiu em frente e conseguiu contar, pela primeira vez, com apoio financeiro. Foi contemplado com 200 mil reais ao vencer um concurso nacional da Funarte ligado à música. Além disso, a Heineken tornou-se um parceiro importante no momento de concluir a obra e fazer a mudança para o novo endereço.

NA NOVA CASA, É O ALMOÇO QUE AJUDA A FECHAR A CONTA

Em fevereiro, aconteceu a inauguração da nova Casa e, na mesma época, Rubens convidou Fernanda para tornar-se sócia. Um movimento natural, diz ele, uma vez que ela já administrava a outra casa e tornou-se uma peça fundamental para a continuidade do projeto, agora em dimensão maior. Na mesma medida, aumentou também o desafio do próprio Rubens, que comenta:

“Não é à tôa que ninguém faz nada no centro histórico. Assim como são poucos os palcos comprometidos culturalmente com o cenário artístico de música autoral. Nada disso é favorável financeiramente”

Não é fácil, mas é o que ele precisa e quer fazer. O novo local continua com a mesma proposta de antes: shows à noite, priorizando música autoral e inventiva. Mas, agora, há mais possibilidades. Na época dos Jardins, o público tinha que assistir aos shows sentado. Hoje é possível ver as apresentações em pé. Mas a alma se mantém, bem como a reverência ao artista: cinco minutos antes do show começar, o trabalho na cozinha é interrompido.

Emicida no palco da nova Casa de Francisca, que saiu de uma casinha minúscula para ocupar um palacete histórico no centro da capital paulista.

Emicida no palco da nova Casa de Francisca, que saiu de uma casinha minúscula para ocupar um palacete histórico no centro da capital paulista.

Outra novidade é que a Casa de Francisca agora serve almoço. As refeições, por sinal, são a principal aposta de arrecadação para — quem diria — viabilizar o espaço musical. Funciona de segunda a sexta, com pratos à la carte a partir de 35 reais. Não há garçons e a maneira de servir foi apelidada por Rubens de quermesse: “O sujeito pega a ficha no caixa, vai até a cozinha e pega o prato, vai até o bar e pega a bebida. Depois, procura uma mesa para se sentar. Quando acaba, leva o prato de volta para a cozinha”.

O sistema agradou. E tem sido normal uma fila se formar durante o período do almoço. Rubens diz que serve em média 2 500 pratos por mês, cerca de 170 por dia. À noite, pouco mais de 2 500 pessoas por mês, pagando um ingresso que varia de 35 a 60 reais, dependendo da atração musical. No total, circulam pela nova Casa de Francisca pouco mais de cinco mil pessoas, gerando um faturamento mensal aproximado de 200 mil reais. Os gastos para pagar os empréstimos feitos para realizar a reforma, além do aluguel do espaço, são grandes, e Rubens prefere não revelar exatamente quanto.

Hoje trabalham 30 funcionários na nova Casa de Francisca. As apresentações musicais acontecem de quarta a domingo à noite e costumam lotar os 120 lugares. Aos sábados também há música ao vivo no almoço. A expectativa é que no próximo ano, com a nova sócia especializada em administração e o espaço funcionando em dois períodos, Rubens consiga finalmente largar os outros frilas e se dedicar integralmente à missão de deixar São Paulo menos impessoal.

DRAFT CARD

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  • Projeto: Casa de Francisca
  • O que faz: Espaço para shows autorais
  • Sócio(s): Rubens Amatto e Fernanda Pereira
  • Funcionários: 30
  • Sede: São Paulo
  • Início das atividades: novembro de 2006
  • Investimento inicial: não houve
  • Faturamento: R$ 200.000 por mês (valor aproximado)
  • Contato: info@casadefrancisca.art.br
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