Salvar a Amazônia é uma missão que passa pelo estômago: a Manioca valoriza os sabores da região e ajuda a manter a floresta de pé

Dani Rosolen - 4 jul 2022
Paulo Reis e Joanna Martins, fundadores da Manioca.
Dani Rosolen - 4 jul 2022
COMPARTILHE

Você já experimentou fazer uma receita com molho de tucupi (caldo fermentado e temperado, extraído da raiz da mandioca brava amarela)? Para quem não mora no Norte do país, usar este ingrediente no dia a dia pode parecer algo muito distante e restrito à culinária típica da região ou à rotina de chefs de restaurantes.

É exatamente este estranhamento que os empreendedores da paraense Manioca querem mudar, fazendo com que brasileiros de todos os cantos e até mesmo estrangeiros usem ingredientes da Amazônia em pratos do dia a dia, como carnes, massas e risotos. Segundo Joanna Martins, 41, fundadora da marca:

“Queremos que produtos como tucupi conquistem espaços que não são naturalmente deles na gastronomia. Temos a pretensão de colocar esses ingredientes na casa de todos os brasileiros”

A empresa de alimentos naturais, feitos com matérias-primas do ecossistema amazônico, foi fundada há oito anos, em Belém, pela empreendedora que cresceu convivendo com o mundo gastronômico e a valorização dos ingredientes da Amazônia. Ela é filha do chef Paulo Martins e neta de Anna Maria, fundadores do renomado restaurante Lá em Casa, criado em 1972.

Os dois já faleceram (Paulo, em 2010, e Anna, em 2007) e o restaurante fechou as portas em março 2021 devido às incertezas da pandemia, mas os dois deixaram de herança para Joanna a paixão pelos sabores de sua terra natal.

Em 2016, a Manioca ganhou um novo cofundador, Paulo Reis, 30, e desde então os dois empreendedores vêm expandindo sua linha de produtos, que não conta só com molhos, como o de tucupi, mas geleias, farinhas, grãos, granolas, temperos e snacks comercializados em qualquer região do país – muitos destes itens, aliás, são receitas da família de Joanna.

A missão da empresa, que ano passado faturou 1,3 milhão de reais (a previsão para 2022 é dobrar a cifra), é possibilitar que a riqueza da biodiversidade amazônica se torne mais acessível ao mesmo tempo em que fortalece a economia da região, comprando matéria-prima de pequenos agricultores familiares, comunidades regionais, tradicionais e ribeirinhas.

ELA SE INCOMODAVA COM A VISÃO EXÓTICA DOS PRÓPRIOS BRASILEIROS SOBRE AS COMIDAS E COSTUMES DA REGIÃO AMAZÔNICA

Joana nasceu e cresceu neste meio da cozinha paraense e chegou a trabalhar em períodos diferentes no Lá em Casa, mas optou por seguir outro caminho.

Ela se mudou para São Paulo para cursar Publicidade e, só depois de ter morado fora, percebeu o potencial da culinária paraense.

“Me incomodava muito ver aquilo que era tão natural para mim, fazia parte do meu dia a dia, ser visto como uma comida exótica para pessoas que são do próprio Brasil. E não só a comida, mas toda a nossa cultura, artesanato, arquitetura, música…”

Quando retornou a Belém, ela manteve esse desconforto incubado e acabou voltando a trabalhar no restaurante da família e, depois, no mercado publicitário. Até que encontrou uma amiga, a Renata Valente, que também tinha morado fora e passado pela mesma inquietação.

Juntas, elas decidiram abrir um e-commerce de produtos da Amazônia, em 2009. “O Amazônia Empório vendia de tudo, de bijuteria a perfumaria e comida”, diz.

O E-COMMERCE NÃO DEU CERTO, MAS SERVIU DE FERMENTO PARA A CRIAÇÃO DA MANIOCA

Naquela época, conta Joanna, o principal desafio era a logística, porque o mercado consumidor estava em São Paulo e elas só podiam contar com os Correio para fazer os despachos. A empreendedora lembra que também houve outro problema para a empresa engrenar: o fornecimento dos produtos.

“Eu e minha amiga éramos amazônicas, mas urbanas, sem nenhuma relação direta com a floresta, e isso fez com que a gente não entendesse bem a realidade e a lógica dos fornecedores, o jeito diferente de fazer negócio”

O Amazônia Empório acabou não dando certo por esses motivos e Joanna voltou ao restaurante da família. Foi lá que percebeu que a cozinha brasileira estava ganhando destaque no mundo e a demanda por produtos locais, crescendo. O Lá em Casa já fornecia itens da cozinha amazônica para chefs e restaurantes de São Paulo e Rio de Janeiro — e a empreendedora viu ali uma oportunidade.

Assim, em 2014, ela fundou a Manioca, que primeiramente oferecia produtos tradicionais como tucupi, farinhas, feijão manteiguinha, jambu, entre outros, para restaurantes, hotéis e bares. Mas desde o princípio, Joanna queria que a ideia fosse além.

“Já nascemos com essa visão de desenvolver produtos para o mercado consumidor, porque desde sempre eu queria que as pessoas tivessem acesso a esses produtos na casa delas, e não só a oportunidade de provar esses sabores em um restaurante.”

A CHEGADA DO SÓCIO AJUDOU JOANNA A POTENCIALIZAR A EMPRESA

Paulo teve contato com Joanna no primeiro mês de operação da Manioca, quando ele ainda estava na faculdade de Direito.

Na época, ele prestava consultoria para projetos ligados a ingredientes da Amazônia e a povos tradicionais e o Empório Amazônia era uma das empresas atendidas.

Mas foi só dois anos depois que entrou como sócio no negócio. Ele chegou a ter uma empresa e trabalhar em um banco, mas percebeu que estava fugindo do seu propósito. “Queria muito atuar com algo daqui, dar à nossa região um lugar de protagonismo, mostrar que a gente tem potencial”, lembra.

Com isso em mente, em 2016 ele procurou Joanna e entrou na Manioca, primeiro, como funcionário, mas em pouco tempo, virou cofundador, ajudando a empreendedora a potencializar o trabalho. “A gente se dividiu e eu fique mais com o desenvolvimento de produto e na operação e o Paulo cuidando do mercado”, afirma Joanna.

ELES CRIARAM UM PROGRAMA FOCADO EM SUSTENTABILIDADE E NO MONITORAMENTO SOCIAL DAS AÇÕES DA EMPRESA

Para além de divulgar os produtos da Amazônia, os empreendedores sempre se preocuparam em utilizar matérias-primas provenientes da agricultura familiar e apoiar as comunidades tradicionais da região.

Por isso, a partir de 2017, decidiram criar um programa, o Raízes, para dar assistência aos pequenos produtores, com base em três pilares: gerar renda, oferecer treinamento profissional e proteger a área florestal onde estão alocados.

“O programa já passou por adaptações ao longo desses cinco anos e está focado em monitorar áreas para evitar o desmatamento, para isso a gente está emitindo o CAR [CADASTRO AMBIENTAL RURAL], que é um registro para os fornecedores, para entender onde estão e monitorar essa área”, conta Paulo. Ele prossegue:

“Estamos monitorando também a renda que geramos, fazendo todo o possível para evitar atravessadores e prestando assistência técnica para que nossos fornecedores consigam produzir com qualidade e de forma competitiva, mantendo o respeito à cultura tradicional”

Hoje, 37 famílias de dez cidades diferentes do Nordeste do Pará produzem, em 600 hectares de terra, 20 itens comprados pela Manioca, entre eles açaí, coentro selvagem, cupuaçu, jambu, mandioca, pimenta etc.

De olho nas questões ESG de ponta à ponta, a Manioca ainda conta com certificações como os selos Origens Brasil e Eu Reciclo.

AO FORNECER PARA O FOOD SERVICE, ELES FORAM APRIMORANDO SEUS PRODUTOS E MATÉRIAS-PRIMAS

Quando começaram a vender para restaurantes com os quais o Lá em Casa já tinha contato, o carro-chefe da casa, o molho de tucupi, era terceirizado.

Com o tempo, no entanto, a dupla percebeu que precisava trazer a produção para dentro a fim de padronizar o produto, até então muito artesanal. Em 2021, os sócios fizeram isso, agregando novas tecnologias e práticas ao processo.

Uma delas foi conseguir, através da engenharia de alimentos, vender o tucupi descongelado. Antes, ele era comercializado para o food  service em sacos de dois quilos e passou a ser oferecido em garrafas de dois litros.

A partir do momento que começaram a produzir o tucupi, eles também passaram a ter contato direto com os produtores da mandioca. Segundo Joanna:

“Com isso, passamos a incentivar a produção de forma orgânica e desenvolvemos uma pesquisa para produzir a mandioca no sistema agroflorestal. Além disso, nossos fornecedores já estão plantando a mandioca em consórcio com a pimenta, o que potencializa a renda”

A primeira colheita de mandioca orgânica, algo inédito no Brasil, de acordo com a empreendedora, deve acontecer daqui três meses.

Além do molho de tucupi, outros produtos vendidos aos restaurantes são o molho de tucupi preto concentrado, farinhas (de tapioca e d’água, que custam de 16 a 30 reais), feijão manteiguinha, especiarias e geleias nos sabores açaí, cacau com cumaru, cupuaçu, jambu, manga, muruci, pimenta de cheiro, priprioca e taperebá (caja), que só são encontradas na região (30 reais).

Hoje são 30 restaurantes clientes, entre eles o D.O.M, de Alex Atala, o Maní, de Helena Rizzo, e o Mocotó, de Rodrigo Oliveira. “Com a pandemia, tivemos uma redução muito grande desse tipo de cliente porque esse setor quase parou. Antes da pandemia, 50% das nossas vendas eram para o food service, hoje elas representa cerca de 10%”, conta Joanna.

COMO ADAPTAR OS PRODUTOS PARA O CONSUMIDOR FINAL? CONEXÃO E EDUCAÇÃO SÃO AS BASES DA EMPRESA

Se por um lado, durante a pandemia as vendas para o food service caíram, por outro, o fornecimento direto para o varejo e para o consumidor aumentou.

Quando decidiram focar no cliente final, os sócios precisaram achar novas formas de conservar suas criações para que durassem nas prateleiras. A partir de 2015, passaram a fornecer os itens para empórios, depois em 2017 para supermercados, até que em 2020 começaram as vendas online Segundo Joanna:

“Tivemos que nos aproximar da tecnologia de alimentos e da inovação. Todos os nossos produtos são 100% naturais e acreditamos que não faria sentido levar a Amazônia para a casa das pessoas oferecendo algo artificial”

O carro-chefe da Manioca é o molho de tucupi vendido no varejo em uma garrafinha de 300 ml.

Ao mesmo tempo, eles tiveram que estudar a fundo o mercado e “educar” a população do restante do país sobre os ingredientes amazônicos, como conta Paulo:

“Tem duas palavras que são essenciais para o nosso trabalho, conectar e traduzir. Conectar no sentido de deixar próximo e fácil um produto que antes não era conhecido e traduzir é adaptar nossa cultura a uma linguagem com a qual as pessoas já estão acostumadas.”

A partir dessa premissa, a Manioca desenvolveu uma nova comunicação e embalagens atrativas para apresentar seus produtos. Segundo a fundadora:

“Enquanto aqui na Amazônia o tucupi é vendido numa garrafa de 2 litros, para o paraense, a garrafinha da Manioca que colocamos no mercado em 2021 tem 300 mililitros, é quase um shot de tucupi” 

Brincadeiras à parte, os empreendedores entendem que essa é uma forma de introduzir o produto no mercado. Eles também ensinam como usar o molho, que custa 24 reais.

“A gente dá dicas sobre em que pratos o molho fica bom, passamos receitas. Na nossa opinião, ela vai  bem com cogumelo, peixe, frango legumes, com tudo! Mas recomendamos, por exemplo, para começar, o uso em risoto e arroz caldosos”, diz Paulo.

A MANIOCA APOSTA EM PRODUTOS COM OS QUAIS OS CONSUMIDORES JÁ ESTÃO ACOSTUMADOS

Os sócios também entenderam que, além de educar o consumidor e o varejo sobre esses produtos que não são de uso convencional em outras partes do país, precisavam introduzir ingredientes da Amazônia em comidas com as quais as pessoas já estão acostumadas.

Assim nasceram opções como a granola da Manioca (20 reais), que além da tapioca flocada, leva castanha do Pará, nibs de cacau, cupuaçu e cumaru.

“Este é o tipo de produto que a gente não precisa apresentar. Assim, conseguimos cortar caminho, levando os ingredientes da Amazônia para a casa das pessoas com algo que elas já sabem como usar”

A granola da Manioca leva tapioca flocada,  castanha do Pará, nibs de cacau, cupuaçu e cumaru.

Outra aposta da Manioca neste sentido é o Nióc, uma linha de snacks saudáveis recém-lançada com pacotinhos de 30 gramas (R$ 9,90) em quatro sabores.

São bolachinhas salgadas feitas a partir da massa da mandioca usada para fazer o tucupi e depois temperadas com o próprio tucupi, cipó de alho, jambu e pimenta assisi.

“Estamos entrando agora neste segmento de snacks saudáveis e este ano também vamos lançar para o food service uma linha de especiarias em pó”, conta Joanna.

Os produtos da empresa podem ser encontrados no próprio e-commerce da Manioca, no Mercado Livre e em 250 pontos de venda físicos espalhados pelo país em mercadinhos naturais e empórios ou em grandes redes como o Pão de Açúcar.

MESMO COM ESTUDO DE MERCADO, ERROS ACONTECERAM E SERVIRAM DE LIÇÃO

Foi preciso ter humildade e olhos abertos, diz Paulo, para entender que alguns produtos não funcionavam bem no ponto de venda.

Ele cita como exemplo um item que tiraram do catálogo. “Tínhamos um azeite de oliva temperado com pimenta que era muito mais caro que o azeite puro e, para quem comprava pela pimenta, também era muito mais caro que a pimenta. Apesar de ser gostoso, não vendia e acabamos desistindo dele.”

O empreendedor ainda cita um outro produto, o molho de tucupi preto (R$ 41,99), que se mantém no catálogo, mas é apresentado de forma diferente.

“Como o tucupi preto tem uma aparência parecida com a do shoyu, passamos a chamá-lo de de shoyu do século 21. Só que tem um detalhe: ele custa dez vezes o preço deste produto. Então, hoje mudamos a comunicação, mostrando que ele pode ser usado como shoyu, mas destacamos outras propriedades”

No entanto, o maior erro da trajetória da Manioca, na visão de Paulo, tem a ver com o nome da empresa. “Quando fizemos o registro, colocamos o negócio só na categoria de produção de alimentos. Seis meses depois mais ou menos, o restaurante [Maní] de São Paulo registrou a marca como estabelecimento. Então hoje, se a gente quiser abrir uma loja na capital paulista terá que ser com outro nome”, diz.

O DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL É POSSÍVEL E AJUDA A MANTER A FLORESTA EM PÉ

Os empreendedores comentam que desde o início da operação da Manioca, eles decidiram se posicionar em relação ao descaso das autoridades brasileiras com a Amazônia. Segundo Paulo:

“Se a gente não defender o nossos próprio trabalho e a nossa região enquanto povo, nossa diversidade enquanto humanidade e nosso protagonismo enquanto região, estamos perdidos”

Joana acrescenta: “Evitamos embates gratuitos e tentamos aproveitar o que nossos público já percebe para falar de uma maneira mais efetiva, deixando claro que algumas ações políticas interferem na nossa segurança”.

Os dos destacam que a Manioca é parte de um projeto maior, que acredita no potencial da Amazônia, na cultura, história e manutenção da biodiversidade a partir do desenvolvimento sustentável da região.

“Cresci ouvindo que a Amazônia não podia se desenvolver, porque isso, na visão que se tinha, geraria destruição. E hoje a gente vê negócios como a Manioca e vários outros trazendo renda para as pessoas que mantêm essa floresta em pé. Ela não vai se manter sozinha, ou vai ser destruída ou preservada — e quem vai fazer isso são as pessoas que vivem aqui”

A importância do enfoque na preservação da floresta já foi notado por instituições e iniciativas como Fundo Vale, Sitawi, Instituto Humanize e programas como Parceiros pela Amazônia (hoje AMAZ), Climate Ventures, Empreender com Impacto (do Mercado Livre) e Sinergia (da Fundação Certi).

Algumas desses organizações já injetaram, em duas rodadas de investimento, 2,1 milhões de reais na empresa, que começou a operar com 800 mil reais captados pela fundadora com familiares.

O GOSTINHO DA AMAZÔNIA TAMBÉM ATRAI OS ESTRANGEIROS

O potencial dos produtos já foi notado lá fora. A Manioca exporta desde 2019 para os Estados Unidos, Europa e Japão, sendo que 90% dos produtos enviados são tucupi e farinhas.

A empresa chamou atenção, inclusive, no meio gastronômico internacional e ano passado ganhou, com seu tucupi, um prêmio de inovação em alimentos do Sirha Lyon, um dos mais importantes eventos da alta gastronomia do mundo, realizado na França. Paulo diz, com orgulho:

“Eu acho que os estrangeiros estão muito interessados nos produtos amazônicos. Esse movimento começou com o açaí e as castanhas e agora eles estão descobrindo outras possibilidades, como o tucupi”

“No geral, eles parecem um pouco mais preocupados com as questões relacionadas à sustentabilidade e para eles está muito clara a necessidade de apoiar a Amazônia”, complementa.

DRAFT CARD

Draft Card Logo
  • Projeto: Manioca
  • O que faz: Produz alimentos naturais com matérias-primas da Amazônia
  • Sócio(s): Joanna Martins e Paulo Reis
  • Funcionários: 30
  • Sede: Belém
  • Início das atividades: 2014
  • Investimento inicial: R$ 800 mil
  • Faturamento: R$ 1,3 milhão em 2021
  • Contato: [email protected]
COMPARTILHE

Confira Também: