Em 2008, Leonardo Letelier emprestou 150 mil reais de suas próprias economias para duas instituições: a paranaense Solidarium, que fomentava uma rede de artesãos por meio de vendas no varejo, e a Daspu, grife de uma ONG carioca em prol da cidadania de prostitutas. Ele queria provar a viabilidade da Sitawi Finanças do Bem, organização que havia criado no ano anterior para fazer empréstimos a ONGs e Negócios de Impacto.
O empreendedor, de 45 anos, conta que o dinheiro foi usado — e depois devolvido:
“Havia muita desconfiança de potenciais doadores de que ONGs e Negócios Sociais pudessem quitar suas dívidas. Com esses dois investimentos, consegui destravar as doações”
Uma década depois, a Sitawi já atendeu mais de 100 organização e negócios. Leonardo detalha as fontes das doações: 33% vêm de empresas; 24% de pessoas físicas; 23% de fundações, associações e institutos; e 20% de agências de desenvolvimento (instituições nacionais com missão de financiar o desenvolvimento).
“A maior parte dos recursos de empresas são para os fundos que gerenciamos. Para a Sitawi — ou seja, doações para pagar aluguel, salários etc. –, são de pessoas físicas. Nos últimos três anos, mobilizamos mais de 20 milhões de reais. Em 2019, a previsão é mobilizar 16 milhões de reais.”
UMA GUINADA PARA SE APROXIMAR DE EMPREENDEDORES SOCIAIS
“Sitawi”, segundo informa o Linkedin de Leonardo, significa “crescer, florescer”, em suaíli, língua banto falada no Leste da África. Na região, entre a Tanzânia e o Quênia, está o Monte Kilimanjaro, ponto culminante do continente, que o empreendedor escalou em 2002, mesmo ano em que concluiu um MBA na Harvard Business School.
Engenheiro de Produção pela USP, ele trabalhou por oito anos na consultoria McKinsey. Era gerente sênior de projetos quando começou a pensar em usar as habilidades, o conhecimento e interesse em finanças para gerar transformação — só não sabia como.
Fez, então, um “exercício” para lembrar episódios da carreira em que havia se sentido contente. “Se eu descobrisse o que havia de comum entre eles, poderia entender o que queria fazer.” Entre outras recordações, lembrou de ter ficado especialmente feliz ao ajudar, de maneira pro bono, a empreendedora social Vera Cordeiro, da Associação Saúde Criança, a repensar a governança da organização.
“Eu saía das reuniões com ela [me sentindo] uma pessoa melhor. E essa sensação é imbatível. Então, quis desenhar uma atuação para ficar perto dessas pessoas”
Assim, Leonardo decidiu atuar na grande dor dos empreendedores sociais: o dinheiro.
DOIS CNPJS DIFERENTES PARA POTENCIALIZAR O IMPACTO
Instalada em um escritório em Botafogo, Zona Sul do Rio, a Sitawi opera com dois CNPJS, um sem fins lucrativos, do qual Leonardo é o CEO (e que faturou R$ 3 milhões em 2018); e outro com fins lucrativos e faturamento de R$ 2,8 milhões no mesmo ano. Diretoria, conselho e departamento jurídico são separados para evitar conflitos de interesse.
O braço comercial doa 10% da receita para a metade sem fins lucrativos. “Mesmo assim, basicamente fecha no zero a zero, porque a atuação tem mais benefício público (para a sociedade) do que benefício privado (para os clientes)”, diz Leonardo.
Em seu braço sem fins lucrativos, a Sitawi recebe doações de PF e PJ, gerencia e empresta o dinheiro para instituições e empresas selecionadas com base em critérios como impacto social gerado, capacidade de pagamento, “fibra ética da liderança” e dificuldade de acesso a crédito.
O dinheiro volta para a Sitawi com juros, é reinvestido em novos negócios e usado na manutenção do trabalho. Os juros são de 1% ao mês e o prazo de pagamento varia de 12 a 36 meses. O valor mínimo emprestado é de 60 mil reais.
“O pedido de recurso e a aprovação sempre vêm com um direcionamento dado pelo próprio empreendedor. O que às vezes fazemos é testar se esse direcionamento faz sentido, mas a decisão final é dele. Se achamos que o risco é muito alto, não aprovamos o empréstimo”.
Por não ser uma empresa tradicional, existe flexibilidade para negociar e conversar com os empreendedores.
“A gente não quer só emprestar. Queremos ajudar os empreendedores a ter uma atuação mais consistente, cada vez com mais impacto”
Em 2016, por exemplo, a Feira Preta pegou um empréstimo de R$ 70 mil com a Sitawi para financiar a locação de um centro de convenções em São Paulo, que abrigaria seu evento de afroempreendedorismo. Na ocasião, acabou não conseguindo quitar a dívida no prazo.
“Por ser a Sitawi nossa credora, houve o entendimento que era um negócio de impacto social e tinha riscos. Conseguimos entrar em um acordo para fazer a devolução desse dinheiro em um prazo extra”, diz Adriana Barbosa, fundadora da Feira Preta. “Além disso, a Sitawi sentou comigo para fazer planilha, pensar em formas de devolução e em projetos e produtos que poderiam gerar receita para nos ajudar.”
PLATAFORMA DE EMPRÉSTIMO P2P PERMITE INVESTIR EM CINCO NEGÓCIOS
A lógica inicial era que os juros dos empréstimos feitos com o dinheiro doado pagariam as contas. Como isso não aconteceu, a Sitawi lançou novos serviços. O mais recente é uma plataforma de empréstimo P2P (peer to peer), pela qual qualquer pessoa pode investir em cinco negócios de impacto de cinco estados do Brasil: Orgânicos in Box (RJ), Stattus4 (SP), Inteceleri (PA), CoopSertão (BA) e UP Saúde (RN).
“Com essa plataforma, conseguimos democratizar o investimento de impacto e trazer milhares de pessoas que querem alinhar seus investimentos a seus valores”
Dois desses negócios já alcançaram 100% de captação pela plataforma. A Coopsertão é uma cooperativa que pretende gerar renda e restaurar a caatinga incentivando a produção agroecológica; em 2018, foram produzidas 50 toneladas de polpa de fruta.
Parceira do Google Educação, a Inteceleri desenvolveu dois apps para ensino de matemática e um óculos de realidade virtual feito com uma fibra da Amazônia, colhida pelos alunos, pais e professores. Hoje, 250 mil alunos usam a solução.
Por meio da plataforma de empréstimo coletivo da Sitawi, o investidor tem o retorno do capital investido. Os juros são de 1% ao mês e o tomador do empréstimo paga em parcelas mensais (ao longo de dois anos), o que ajuda a reduzir o risco para esse investidor. Segundo Leonardo, a taxa de inadimplência é de 3%. Em 12 anos de Sitawi, apenas três negócios não quitaram sua dívida.
OS FUNDOS FILANTRÓPICOS SÃO OUTRA FORMA DE POTENCIALIZAR O IMPACTO
Outra linha de ação é a Gestão de Fundos Filantrópicos, que desde 2012 possibilita o co-investimento de doadores nacionais ou internacionais. Esses fundos são criados com capital de famílias ou companhias. A Sitawi gerencia o fluxo financeiro entre as empresas e as causas sociais, desenrolando trâmites e dando eficiência ao processo. Em 2018, foram geridos 12 fundos que mobilizaram R$ 6 milhões e beneficiaram 33 organizações.
“A gente se preocupa com entrada, saída, compliance, parte legal, auditoria. E o dinheiro que está parado na conta fica investido no mercado tradicional”
Os recursos podem ser usados de três maneiras: em empréstimo para instituições e empresas de impacto (neste caso, o dinheiro volta para o fundo com juros e é reaplicado), doação para organizações sem fins lucrativos ou pagamento de despesas do projeto.
Hoje, há sete fundos filantrópicos ativos, alguns atrelados a fundações internacionais como a BMW Foundation e a Ford Foundation, outros só com capital nacional, como o Janelas Abertas, criado para destinar bolsas de estudos da escola Eleva, no Rio, a estudantes de baixa renda: a cada aluno financiado por um doador da Associação Janelas Abertas, o colégio garante a educação de outra criança.
UM NOVO FOCO: IMPLEMENTAR CONTRATOS DE IMPACTO SOCIAL NO BRASIL
A Sitawi tem trabalhado (inclusive, atuando na revisão de um projeto de lei do Senado) para implementar no país Contratos de Impacto Social (CIS). Trata-se de uma ferramenta de contratação pública de investimentos privados para a execução de serviços sociais.
Na prática, funciona assim: uma empresa financia a execução do projeto de uma instituição para solucionar um problema de cunho social (como evasão escolar, população de rua elevada etc.). Quando os resultados são atingidos, esse investidor é remunerado pelo governo com uma taxa de retorno. A questão é estar disposto a esperar o resultado (que pode levar anos) e a correr o risco de a meta não ser atingida.
Hoje, segundo a Sitawi, existem 70 CIS em vigor no mundo. Leonardo cita um caso em Peterborough, no Reino Unido, que por meio de um Contrato de Impacto Social reduziu a reincidência criminal em 9% comparado ao grupo de controle (a meta era 7,5%). Assim, os investidores receberam retorno financeiro, além do dinheiro de volta — ao todo, foram investidos cerca de 9 milhões de dólares.
Para alavancar a ideia no Brasil, a Sitawi está com uma chamada aberta até 20 de setembro para gestores públicos submeterem ideias de contrato de impacto social, que serão acelerados e premiados com uma avaliação de viabilidade.
No seu braço comercial, a Sitawi aconselha investidores, financiadores, empresas e governos a incorporar questões ambientais, sociais e de governança nas decisões de alocação de capital, de modo a aguçar o olhar para questões sociais e ambientais e a pensar em como fluir seu capital para atuações de impacto positivo.
Dentre os clientes estão Itaú, Sulamérica e Axxon Group. Neste eixo, a Sitawi está presente ainda em outros países da América Latina: 36% dos projetos com fins lucrativos foram realizados em Bolívia, Colômbia, Costa Rica, El Salvador, Equador, Nicarágua, Panamá e Peru.
Leonardo acredita que esse modelo híbrido é um caminho saudável para atuações de impacto porque abre mais possibilidade de acesso a capital. “O importante é equalizar os subsídios necessários para que essa atuação seja possível.”
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