Tudo começou quando minha esposa, Eve, veio me pedir ajuda para inscrever um projeto no programa para a Valorização de Iniciativas Culturais (VAI), da cidade de São Paulo, e me perguntou se eu poderia auxiliar na revisão do texto e participar da coordenação, caso a ideia fosse aprovada.
Aceitei os dois convites sem pensar muito e sem perceber que esse momento era o começo de uma grande mudança.
Estávamos as duas em estágios parecidos da vida. Eu, no fim da minha graduação em Pedagogia e também finalizando a Iniciação Científica. Ela tinha acabado de se formar em Fotografia.
As duas encarando o início de uma jornada profissional e tentando descobrir com o que poderíamos trabalhar, de fato.
Apesar dessa incerteza inicial, tínhamos uma vontade em comum: atuar com ações sociais e com diversidade e inclusão.
O projeto que ela escreveu foi inspirado na sua vivência e na de um amigo que também foi convidado para participar da coordenação do projeto, o Pietro, um homem trans.
Os dois trabalharam juntos por alguns anos como atendentes em cafeterias e restaurantes e ela acompanhou de perto o processo de hormonização do amigo, as dificuldades que ele tinha no ambiente de trabalho quando ficava menstruado, assim como sua recolocação profissional na área da Tecnologia.
Quando fiz a primeira revisão do texto do projeto, entendi a profundidade do assunto com o qual estávamos lidando. Eu já tinha ouvido falar sobre pobreza menstrual antes, porém de forma distanciada, sem compreender exatamente como essa condição opera e quais são seus desdobramentos.
Pobreza menstrual vai muito além de não ter dinheiro para comprar absorventes. Também é sobre falta de acesso à informação acerca da fisiologia da menstruação, de conhecimento de meios saudáveis e sustentáveis de cuidados durante o ciclo menstrual e falta de acesso ao sistema de saúde, a consultas e exames de rotina e ao saneamento básico.
E se falar de menstruação para mulheres cis já é considerado um tabu, mesmo hoje em dia, imagine para pessoas que não atendem às normas de performance de gênero impostas pela sociedade?
Para homens trans, pessoas transmasculinas e não-binárias, a pobreza menstrual pode significar uma exposição indesejada no momento de comprar absorventes, pois itens de cuidado para o período menstrual são sempre associados ao gênero feminino
Para essa população, a pobreza menstrual também pode ser ter que se render a usar calcinhas, pois o formato dos absorventes externos não é pensado para ser usado com cuecas.
Em outro nível, essas pessoas também são vítimas da pobreza menstrual quando não possuem ferramentas para lidar com a disforia, uma angústia em relação ao gênero que a pessoa se identifica e aquele que foi atribuído a ela no nascimento, já que essa sensação pode se intensificar no momento da menstruação.
Foi levando tudo isso em consideração que o Projeto Pessoas Menstruam nasceu. E qual foi a nossa surpresa quando recebemos a notícia de que ele tinha sido aprovado no edital!
Surpresa porque era a nossa primeira vez tendo um projeto avaliado, porque não sabíamos se a banca consideraria a ideia tão importante quanto era para gente e porque parecia muito bom para ser verdade finalmente ter o dinheiro necessário para tornar a proposta uma realidade.
Foi nesse misto de incredulidade e muita vontade que o Pessoas Menstruam teve início. E foi também quando os desafios começaram a aparecer.
O primeiro deles foi a necessidade de conhecer ferramentas de marketing digital para conseguir alcançar o público do projeto. Como todas as atividades seriam realizadas remotamente, a publicidade foi feita apenas por meio das redes sociais.
Já era um gasto previsto o tráfego pago das publicações para termos certeza de que a notícia chegaria para o maior número de pessoas possível. Mas no contato com essa ferramenta, descobrimos uma barreira em relação às palavras-chaves do projeto.
Todas as publicações que fazíamos com hashtags homens trans, menstruação ou pobreza menstrual alcançavam pouquíssimas pessoas. Por outro lado, outras publicações sem o uso dessas tags específicas tinham um alcance maior
Estamos ainda tentando descobrir se isso aconteceu por um possível boicote a alguns termos dentro dessas plataformas ou se foi apenas por falta de conhecimento de nossa parte. A questão é que esse desafio dificultou o alcance de todas as nossas ações.
Mesmo assim, consideramos que a realização das atividades propostas foi um sucesso. A primeira delas foi a oficina de confecção de absorventes de pano, que tinha dois principais objetivos.
O primeiro era facilitar o acesso a um meio sustentável de cuidado íntimo e promover a aprendizagem de uma habilidade que pode ser um meio de trabalho autônomo.
Para isso, enviamos todos os materiais necessários para a casa das 40 pessoas selecionadas para participar dessa atividade e o primeiro momento da oficina foi voltado ao conhecimento dos materiais, o motivo do uso de cada um deles, onde encontrá-los e, se necessário, como substituí-los. Nossa intenção com essa oficina não era só ensinar um passo-a-passo técnico, mas compartilhar um conhecimento.
E essa intenção se desdobrou mais ainda na segunda atividade: lives temáticas. Levando em consideração as diversas facetas da pobreza menstrual para a população de homens trans e pessoas transmasculinas e não-binárias, nossa meta era aprofundar alguns recortes em relação a esse assunto.
Assim, a primeira foi sobre “Saúde, sexualidade e ciclo”. Convidamos um homem trans e uma pessoa transmasculina que trabalham diretamente com isso para compartilharem seus conhecimentos sobre cuidados com a saúde menstrual, mental e sexual.
Conversamos sobre os direitos de pessoas trans ao serem atendidas em equipamentos públicos de saúde, cirurgias e hormonização, meios de prevenção a infecções sexualmente transmissíveis (ISTs), conceitos de masculinidade, transmasculinidade e disforia no período menstrual.
Na segunda live, convidamos uma pessoa não-binária para falar sobre empreendedorismo e uma mulher trans para compartilhar sobre empregabilidade, levando em consideração o aspecto financeiro da pobreza menstrual e como podemos reverter o quadro de marginalização profissional e financeira da população trans no Brasil.
A terceira live foi voltada para a discussão do autocuidado. Participaram duas pessoas: um psicólogo, homem trans, e uma nutricionista, mulher cis, especializada em dietas para pessoas que fazem hormonização
A potência dessa conversa foi estarmos conversando sobre bem-estar e saúde entre pessoas de grupos minoritários, a quem geral e fatalmente é possibilitada somente a sobrevivência.
Para mim, foi pessoalmente gratificante essa parte do projeto, já que fui responsável por fazer a mediação das oficinas e das lives e por facilitar o acesso aos conhecimentos compartilhados de forma inclusiva para as pessoas participantes.
No momento que aceitei fazer parte do programa com a Eve, eu ainda não sabia ao certo qual seria minha contribuição, com o que poderia realmente ajudar, mas ao longo das atividades, fui tendo cada vez mais certeza da minha facilidade em lidar com as pessoas e em fazê-las sentirem-se incluídas e acolhidas.
E, então, esse autoconhecimento passou a nortear as minhas decisões profissionais. Por isso, posso dizer com segurança que o impacto do Pessoas Menstruam foi também sobre nós e não apenas sobre o público que tínhamos a intenção de atingir.
Com essa clareza, começamos a nos preparar para o que considero a atividade mais importante do projeto: a gravação de um documentário com a perspectiva de três homens trans e duas pessoas não-binárias sobre suas vivências, seus trabalhos, suas experiência com a menstruação e com o acesso à saúde, seus afetos etc.
E eu digo que essa atividade foi a mais importante por alguns motivos. As pessoas que compartilharam suas experiências chegaram até nós por meio da participação em atividades anteriores.
Foi a primeira vez que pudemos ver de perto a maneira como tínhamos impactado suas vidas. Toda a equipe responsável pela gravação, produção e pós-produção do documentário foi composta por pessoas LGBTQIA+ e isso é muito significativo.
E, por fim, nesse momento, nós três, responsáveis pelo andamento, já estávamos com papéis bem definidos: enquanto Eve assumiu a gestão de tudo e fez um ótimo trabalho como líder, Pietro ajudou a estabelecer contatos e parcerias.
E eu fiquei responsável por atuar diretamente com as pessoas que gostaríamos de atingir, conduzindo as entrevistas necessárias para coletar suas experiências no documentário da forma mais acolhedora e cuidadosa possível, pois estávamos falando de vidas atravessadas por preconceitos, barreiras, falta de acolhimento e também por afetos, conquistas e sonhos.
Homens trans, pessoas transmasculinas e não-binárias também menstruam e todas as pessoas que menstruam são muito mais do que só seu ciclo menstrual.
Foi também durante a gravação dessas entrevistas que pudemos perceber as raízes da pobreza menstrual.
A ideia era desvendar a relação de homens trans, pessoas transmasculinas e não-binárias com a menstruação, mas o que veio à tona a partir disso foi uma enorme barreira transfóbica imposta nas tentativas de acesso aos serviços públicos e privados de saúde.
E essa é uma informação muito grave para ficar só entre a gente: a Medicina não está preparada para atender e acolher corpos dissidentes de gênero.
Estamos finalizando o Projeto Pessoas Menstruam após a distribuição de 150 kits com itens para o cuidado menstrual e sexual. Mas nossas ações em torno dessa causa ainda não chegaram ao fim.
O desafio agora está sendo a captação de recursos para o pagamento das pessoas que fizeram parte da equipe de produção do documentário, porque consideramos imprescindível que pessoas LGBTQIA+ sejam devidamente reconhecidas e remuneradas pelos seus trabalhos.
Além disso, a captação de recursos possibilitará a contratação de outras pessoas especialistas para trabalharem na edição do vídeo, o que aumenta a possibilidade do material ser divulgado e reconhecido, levando em consideração a relevância de sua temática.
Acreditamos que essas também são formas de combater a pobreza menstrual.
Ainda, diante de toda essa experiência, minha esposa e eu decidimos dar continuidade ao trabalho de inclusão de homens trans, pessoas transmasculinas e não-binárias.
Dessa vez, elaboramos uma proposta de projeto voltado para mentorias de empregabilidade nas áreas de Programação e UX/UI Design que irá começar em breve
E assim, seguimos, continuando a fazer o possível para garantir cada vez mais a inclusão e a visibilidade de pessoas com realidades e vivências próximas das nossas.
Se você quiser conhecer mais de perto as nossas ações, acesse nosso Instagram.
Gleice Espindola é professora, pesquisadora em Educação e redatora. Tem atuado em projetos de incentivo à leitura literária, educação bilíngue e em projetos sociais com foco em diversidade e inclusão.
Criada na periferia de Manaus, Auá Mendes fez do grafite sua forma de expressão. A artista da etnia mura, hoje radicada em São Paulo, transforma fachadas e empenas de prédios numa defesa colorida da vida e da cultura dos povos originários.
Na infância, Marina Amaral teve de mudar a alimentação e se exercitar para lidar com o ganho de peso devido ao hipotireoidismo. Adulta, ela deu uma guinada na carreira e desenvolveu o Lia, uma plataforma para fortalecer o bem-estar feminino.
Grávida no começo da pandemia, Thais Lopes resolveu ajudar a construir um país melhor para a sua filha. Deixou a carreira corporativa e fundou a Mães Negras do Brasil, negócio de impacto com foco no desenvolvimento desse grupo de mulheres.