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Um Sistema Único de Arborização para planejar (e fiscalizar) a vegetação urbana: a proposta do paisagista Ricardo Cardim

Paulo Vieira - 29 jan 2025
Ricardo Cardim, fundador do Cardim Arquitetura Paisagística.
Paulo Vieira - 29 jan 2025
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O paulistano Ricardo Cardim, 46, formou-se em odontologia e exerceu a disciplina nos primeiros anos de sua vida profissional. Precisava “sobreviver”, como disse. Mas seu negócio sempre foi a botânica e o paisagismo. 

Hoje, Ricardo é a grande referência nacional dessa última atividade quando se fala do uso de espécies nativas brasileiras. Por meio de seu escritório, o Cardim Arquitetura Paisagística, ele já fez mais de 400 obras exclusivamente com plantas dos nossos biomas, muitas dessas de grande porte. Casos dos projetos paisagísticos dos edifícios O Parque e Seed, ambos da incorporadora Gamaro, e Parque Global, da Benx, todos em São Paulo.

Essa atuação e ainda o uso frequente de suas redes sociais (no Instagram, são 114 mil seguidores, e contando) fizeram dele a grande voz, embora quase solitária, a defender o uso exclusivo de espécies nativas, um imperativo no país de maior biodiversidade do planeta, segundo Ricardo. Não é, contudo, a realidade do paisagismo daqui, forjado com mão de obra imigrante, europeia, e que até hoje utiliza massivamente plantas exóticas. 

Criador e executor também das chamadas florestas de bolso, em que reconstituiu manchas de Mata Atlântica no meio do caos das ruas de São Paulo e com elas mostrou na prática a viabilidade do uso de nossas espécies – seja pelo custo de manutenção dessas florestas, seja pelos serviços ambientais por elas prestados –, Ricardo sugere agora a criação de uma órgão federal para normatizar, fiscalizar e planejar a arborização urbana. 

A medida tiraria esse conjunto de responsabilidades da mão dos prefeitos, que na maior parte das vezes o legam a concessionários terceirizados, como os de energia. É o que Ricardo chama de colocar a “raposa para cuidar do galinheiro”… O resultado tem sido dramático, com as quedas cada vez mais frequentes de árvores nas grandes cidades, sempre mais vulneráveis às mudanças climáticas.

Leia a seguir a entrevista de Ricardo Cardim ao Draft:

 

Você é o grande arauto, talvez solitário, do uso de espécies nativas no paisagismo. Fala que nenhum outro profissional do setor, ao usar uma espécie exótica, se compromete com a responsabilidade, ética ou moral, de manter o ambiente tal como um dia nós o recebemos. Isso porque essas espécies exóticas acabarão indo para as ruas e para as florestas e matarão ou eclipsarão as nativas. Por que essa causa é tão solitária?
Um pouco de contexto: até meados do século 19, o paisagismo não existia no Brasil, o que havia eram apenas jardins informais e utilitários. Era uma moda copiada do higienismo das capitais europeias, como Paris. No Brasil, quem fornecia as plantas e projetava os jardins eram os imigrantes europeus. 

Esses profissionais aproveitavam-se desse desejo da elite brasileira, ansiosa por imitar a Europa, e escolhiam plantas que já conheciam. Era a premissa: usar plantas estrangeiras, nada que remetesse ao Brasil dos sertões. Esse Brasil nativo era tido para os abastados daqui como motivo de vergonha ou de atraso

Quando vem o Modernismo brasileiro, muda-se [o entendimento do paisagismo] para o jardim com plantas tropicais, mas igualmente estrangeiras, vindas da Ásia, da África e da América Central, plantas que já haviam entrado na Europa para ser usadas em ambientes com calefação interna.

Ou seja, continuava o estrangeirismo. Burle Marx [1909-1994] tentou mudar isso, mas a brasilidade não pegou. Eu diria que atualmente o paisagismo brasileiro utiliza 90% de plantas estrangeiras, que estão no mercado internacional de plantas ornamentais. 

O paisagismo no Brasil não é visto como algo além da decoração. Está completamente desconectado de suas motivações e funções ambientais, culturais e ecológicas. A planta é considerada um objeto, não um ser vivo que interage com um ecossistema

Então, sim, pensando nos grandes escritórios, o meu é o único que se preocupa com um paisagismo sustentável, multifuncional, com um paisagismo que respeita a ciência. Mas já existem jovens profissionais que também atuam com paisagismo multifuncional, como a Pam [Faccin].

Muitos profissionais dizem que não há fornecimento suficiente de plantas nativas para os grandes projetos de paisagismo. E que há as espécies vegetais exóticas e há as “adaptadas”, que não seriam tão lesivas. Por que esses argumentos não se sustentam, como você diz?
Essa história de que não há plantas nativas no mercado é uma falácia. Existem sim, mas é preciso estudar, procurar os fornecedores. 

Há grandes viveiros especializados, como o Fábrica de Árvores, a J. Pompeo Botânica Ornamental, o Pátio Caeté, do Legado das Águas. Se não fosse assim, a Cardim Paisagismo não teria feito mais de 400 projetos de paisagismo exclusivamente com plantas nativas. Isso não se sustenta, é uma desculpa. 

Sobre a espécie adaptada, trata-se de um grande equívoco do paisagismo brasileiro. Esse termo, “adaptado”, vem da certificação LEED dos Estados Unidos, país que tem clima e biodiversidade completamente diferentes dos do Brasil. 

Lá, poucas plantas se adaptam, e há o costume, péssimo, de se fazer grandes gramados no meio do deserto, de levar para lá e para a neve as plantas. Isso gera uma manutenção enorme, muito uso de água para irrigação de gramados. Isso é algo que no Brasil nem sequer acontece. Então é outra realidade.

Ora bolas, tudo no Brasil se adapta, seja uma planta da Sibéria, da África do Sul ou do México. Como já dizia Pero Vaz de Caminha, aqui em se plantando, tudo dá

O que quero dizer: muitas das plantas adaptadas são invasoras também. Hoje não tem ciência consolidada no Brasil que pesquise todas as espécies exóticas quanto à sua capacidade de invasão biológica. Mas há ciência para comprovar categoricamente que a invasão biológica é um dos maiores problemas ecológicos do Brasil, país com a maior biodiversidade do planeta. 

Então, as plantas adaptadas podem se comportar como invasoras. O certo no país com a maior biodiversidade do planeta é pesquisar nossas espécies a fim de inseri-las no cotidiano das pessoas.

Você alerta continuamente para os problemas da arborização urbana. Nas cidades, afinal, vivem nove de cada dez brasileiros, ou quase isso. E não há uma diretriz nacional, cabendo a cada prefeito resolver a questão como melhor lhe aprouver, não raro transferindo a concessionários esse trabalho. Qual a sua sugestão para mudar esse quadro?
Hoje a arborização urbana, a vegetação urbana, é um descalabro, a despeito de o Brasil ser um país [predominantemente] urbano. 

A gente tem gestões municipais que se preocupam mais, outras que se preocupam menos, secretarias com pessoas que não conhecem o tema, enfim, uma total falta de investimento e de interesse da classe política pela arborização urbana, pela vegetação urbana. 

O resultado disso são os festivais de árvores que caem após uma tempestade ou mesmo em dias secos e sem ventos, causando tragédias e, pior, gerando uma má vontade da população em relação à arborização. 

As pessoas começam a ver as árvores como inimigas, não como fundamentais para nossa sobrevivência no ambiente urbano, para a nossa saúde física e psicológica nas cidades. Como se não fossem elas que regulassem o clima, que gerassem resiliência contra as mudanças climáticas…

Esse quadro de descaso com a arborização leva a essa situação perversa em que a população fica contra as árvores. Diante desse cenário, eu não vejo como deixar o tema nas mãos dos prefeitos, na mão de gestores tão heterogêneos. Assim como fizeram com os nossos biomas, é fundamental ter um órgão federal para regular, fiscalizar e pesquisar o paisagismo e a arborização urbanos. 

Minha ideia é a de que seja criado um Sistema Único de Arborização, assim como se fez com o SUS, um sistema que imponha e transfira às cidades qualidade técnica. Para que a gente possa ter cidades preparadas para os desafios que já acontecem nesse momento de mudanças climáticas. E para que esse quadro calamitoso de arborização viária seja minimamente resolvido, garantindo qualidade de vida e saúde às populações das cidades brasileiras. 

A criação desse Sistema Único de Arborização, como você propõe, parece pouco factível mesmo num governo com suposta sensibilidade para a questão, como este Lula 3. Considera que essa solução seja viável politicamente? Ou os cataclismos climáticos, cada vez mais constantes, vão tornar essa ação imperativa?
Creio que o quadro das mudanças climáticas vai piorar gravemente, e isso vai levar à adoção dessa ou de outra solução muito rapidamente. Já existe um começo de conversa, eu mesmo fiz uma apresentação ao Conselhão [o Conselho de Desenvolvimento Econômico Social Sustentável], que foi muito bem recebida, mas, claro, isso depende exclusivamente de vontade política. 

Fazer esse órgão federal, fazer uma “Embrapa Paisagismo e Arborização” para desenvolver espécies nativas otimizadas para as cidades do Brasil só depende de vontade política, não é algo caro. É preciso colocar na agenda 

É fundamental que os governos percebam a importância do tema, lembrando que temos aqui três notáveis ingredientes: somos o país com a maior biodiversidade do planeta; a população brasileira mora essencialmente em cidades; as mudanças climáticas estão aí.

De volta ao paisagismo, pensa que há mais sensibilidade do setor de construção civil para o uso do verde nas edificações? Se sim, é benéfico quando os profissionais não optam por espécies nativas?
Sim, o mercado de incorporação imobiliária está muito mais atento ao paisagismo sustentável e multifuncional. Não se trata mais de fazer um rodapé verde no prédio, mas de viabilizar projetos que tragam natureza para dentro da cidade. 

Projetos com espécies nativas já despertam ótima recepção dos empresários. É um caminho sem volta. Há jovens entrando também no movimento, fazendo paisagismo embasado em ciência.

Sobre as plantas estrangeiras, mesmo a utilização delas traz algum tipo de benefício, afinal toda planta produz sombra, toda planta produz serviços ambientais básicos, mas ao fazer isso a gente perde potencialidades.

Aí a gente deixa de contar com plantas a atuar para o reequilíbrio ecológico; para a produção de uma biomassa grande e eficiente que diminua a temperatura e combata as ilhas de calor. Aí deixa de contar com plantas que atuam para abafar barulho, para segurar gases tóxicos, para abrigar e alimentar nossa avifauna. Plantas que ajudam a diminuir as enchentes. 

Quando fazemos paisagismo de valor apenas decorativo, a gente deixa muito a desejar no que se refere aos benefícios prestados à natureza e à humanidade. Espécies exóticas não reequilibram o meio ambiente, não trazem alimento para os ambientes nativos, não contribuem para regenerar a Mata Atlântica e os outros biomas brasileiros

Na verdade, você pode gerar com elas degradação dos ecossistemas nativos, o que iria até mesmo contra o artigo 225 da Constituição Federal. E isso ainda impede a conexão de nós brasileiros com nossa própria biodiversidade, com a importância e a beleza da nossa flora. 

Se a gente não valorizar nossas plantas nativas, não associá-las a desejo e a sofisticação, isso vai se refletir nos remanescentes [vegetais] para além das cidades. Se as cidades não entenderem a importância da vegetação nativa, a gente não vai salvar o que há para lá delas. 

São Paulo, cidade que em meados do século passado optou por um plano de arborização com espécies vigorosas e grandiosas como a tipuana – exótica, aliás –, as vem trocando por outras bem mais miúdas, que oferecem menos “serviços ambientais”. Qual o problema dessa opção, haja vista que muitas dessas grandes árvores caem constantemente?
As árvores só caem nessa quantidade na cidade porque elas não são cuidadas, porque são largadas à própria sorte, porque são vítimas de uma série de maus-tratos infligidos tanto pelo poder público, com suas podas destrutivas, como pelos moradores. As pessoas não são educadas para entender a importância das árvores e de seus serviços ambientais. 

Enfim, a culpa é de todo mundo, menos da sibipiruna e da tipuana. O que a gente precisa é de um plano claro de manutenção, planejamento e investimento.

O que acontece hoje, ou o que parece acontecer, porque ninguém declara isso abertamente, é que os prefeitos passaram a optar por pseudo-árvores, por espécies que não crescem mais do que quatro metros, porque aí eles garantem um número de arborização no final da gestão 

Cumprem o número, mas com árvores que não fazem sombra direito, que não diminuem a temperatura, que não ajudam a aumentar a umidade, que não atraem chuva, que não seguram barulho, enfim, tudo que a gente precisa no ambiente urbano. 

Essas árvores, resedás exóticos e ipês-amarelos anões que hoje vão sendo plantadas, significam apenas um galho das árvores grandes. Isso é uma vergonha, as pessoas precisam saber que isso acontece pelo Brasil a torto e a direito, de norte a sul, de leste a oeste.

Na academia, o paisagismo é dissociado da arquitetura e da engenharia, mesmo que sejam indiscutíveis os ganhos de saúde para quem vive próximo do verde. Ainda que seja mais importante talvez sensibilizar o poder público, como atrair mais arquitetos e engenheiros para a disciplina?
Arquitetos e engenheiros só vão entender a importância da arborização urbana quando a população também entender. Por isso que é fundamental colocar o assunto na agenda governamental. 

Isso tem de ser falado, o meio ambiente das cidades é um tema para sempre negligenciado. O Brasil tem a mania de copiar agendas de fora, um país com muita energia renovável agora fala tanto de energia renovável, mas pouco trata de biodiversidade, de vegetação urbana… 

Temos essas agendas importadas que são repetidas à exaustão e não ajudam a atacar os problemas graves. Claro, quando a gente fala da Amazônia, esse é um tema muito importante – mas ele está muito distante do cotidiano de praticamente 200 milhões de brasileiros.

 

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