Ela deixou o ballet para ser feliz e trilhou uma carreira na indústria de meios de pagamento. Até aceitar um novo desafio na área da saúde

Marina Audi - 1 set 2022
Vanessa Gordilho, diretora-geral da QSaúde.
Marina Audi - 1 set 2022
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Uma ex-bailarina que descobriu ser fã de tecnologia, trabalhou quase duas décadas no setor de meios de pagamento e hoje dirige uma empresa da área de saúde. Esse é um resumo-relâmpago do currículo da baiana Vanessa Gordilho, 43.

Aos 15, ela deixou Salvador para um intercâmbio em uma escola de ballet clássico na Alemanha. Dois meses depois, avisou os pais que não voltaria tão cedo, e passou os três anos seguintes dançando profissionalmente nos palcos europeus. Até entender que a rigidez excessiva dos ensaios batia de frente com seu desejo de ser feliz.

Vanessa voltou ao Brasil, cursou comunicação e deu outra guinada após um MBA e um estágio num banco de investimentos. Ela viu de perto a evolução do dinheiro de plástico, passando por empresas de fabricação e processamento de cartões e pela MasterCard (onde se aproximou do ecossistema de inovação) – até chegar à liderança da Getnet, quando a fintech já estava sob a asa do Santander.

Em 2021, Vanessa foi “picada pelo bichinho da saúde”, como diz, depois que José Seripieri Filho, o Júnior, fundador da Qualicorp (da qual já se desligou), a convidou para ser diretora geral da Qsaúde,  healthtech com foco na prevenção de doenças. 

A operadora de planos de saúde tem como missão democratizar o acesso à saúde suplementar de qualidade, combinando tecnologia e um cuidado mais personalizado. A mensalidade dá direito a usufruir dos serviços de parceiros como InCor, Hospital Israelita Albert Einstein, HCor, Hospital Santa Catarina e Hospital Alemão Oswaldo Cruz. 

Leia a seguir a conversa de Vanessa Gordilho com o Draft:

 

Ainda jovem, antes de trilhar uma carreira no setor de pagamentos, você foi bailarina clássica, morou na Alemanha, se apresentou várias vezes… Como essa história começou?
Eu nasci dançando, desde a barriga. Minha mãe foi uma das primeiras brasileiras a sair do Brasil, porque ganhou uma bolsa de estudos no The Royal Ballet. Ela voltou para casar, depois teve uma escola de ballet em Salvador. 

Quando você se profissionaliza no ballet, começa muito cedo, você vê revelações acontecendo [estourando] entre os 13 e 14 anos. É semelhante aos esportes de alto rendimento. 

A primeira vez que fui pro Festival de Dança de Joinville, eu tinha 13. Eu fui bailarina-revelação naquele ano e lá já tinha alguns olheiros de escolas famosas. Nesse primeiro ano, minha mãe não me deixou ir [estudar ballet no exterior]. 

No ano seguinte, eu já estava muito tentada, estava prestes a fazer 15 anos. Tomei a iniciativa de dizer a meus pais que não queria festa [de debutante]: queria ir pra Hamburg Ballet, da Alemanha, onde tinham me oferecido uma bolsa 

A princípio, eu fui como presente de 15 anos, passar dois meses lá. Mas depois do segundo mês, eu liguei via Embratel e disse que não voltaria. Meus pais me super incentivaram. 

Então passei três anos e oito meses na Alemanha, direto. Morei no internato por um ano e meio. Naquela época era tudo mais difícil: ligação telefônica era caríssima, voo pra Alemanha era uma vez só na semana, a gente se comunicava por cartas.

Uma vez na Europa, sob a disciplina extrema do ballet clássico, a aura do ambiente artístico se desfez?
A magia foi quebrada ao longo daqueles anos. Adquiri muita técnica, metodologia —e uma disciplina exacerbada.  

Eu tinha professores russos que davam varada na nossa perna, tinha muito drama psicológico… meninas com bulimia e todo tipo de problema. Acho que minha base familiar era tão sólida que eu nunca entrei em nenhuma dessas coisas.

Foi emblemático o dia que eu decidi largar o ballet. Era um sábado, um ensaio mais informal; eu estava dançando um pas de deux no fundo, com um bailarino eslovaco, a gente estava feliz… sabe quando você está rindo? 

O professor veio do canto, me xingou e disse: “Por que você está rindo? Que felicidade é essa? Você não está dançando direito! Isso é inadmissível” 

Eu pensei: “Ele quer cortar a minha felicidade! Por que eu estou vivendo isso? Eu tenho 18 anos. Eu sou feliz!”. 

Aquilo foi muito impactante. E sim, essa rigidez tirou a magia. Ela não quebrou, porque dentro de mim sempre tem a busca da felicidade, sou uma pessoa feliz. 

E essa rigidez me ensinou muitas coisas boas que hoje trago inclusive pro meu mundo executivo, e levo pra minha casa, para a educação de minhas filhas. Mas, com certeza, foi o que me tirou da dança profissional.

A ruptura com o ballet te trouxe de volta à Bahia, e você acabou se formando em comunicação social, mas não seguiu carreira na área. Depois, fez um MBA nos EUA e um estágio no Merril Lynch. Foi lá que você se apaixonou por tecnologia?
Não, é um banco de investimentos tradicional… No MBA, fiz alguns cursos sobre TI. Meu primeiro trabalho em tecnologia foi em 2002, numa empresa de processamento de cartão de crédito – a Fidelity [divisão brasileira da FIS]. 

Passei cinco meses na frente da tela verde [do computador] mudando a taxa do dólar diariamente, pra não sair taxa errada nas faturas… Era outro mundo, tudo era muito mais complexo. A tecnologia não era o que é hoje.

Quando cheguei na Gemalto [atual Thales Group], em 2007, uma empresa de chip, entendi que era ali que a transformação estava. Acompanhei a transformação do mundo de cartões. 

Lembra do “mata-pulga” [antigo leitor mecânico de cartões de crédito]? Depois começou a mudar para as máquinas POS [maquininhas portáteis], daí veio o chip – que todo mundo dizia que não ia ter adesão. Só que as fraudes com o mata-pulga estavam enormes e o prejuízo da fraude já pagava a migração para o sistema com o chip. 

Participei da migração para contactless – o cartão de aproximação, sem ter de inserir na máquina. O primeiro projeto de cartão contactless, eu estava junto com o Bradesco e a Visa, e o plástico custava 18 reais, era um absurdo para produzir. Todo mundo dizia que não daria… e deu 

A evolução foi muito rápida… veja as contas digitais e como os pagamentos são feitos, tudo está muito mais fluido. E eu adorava aquilo. Meu mindset sempre foi o de fazer parte de transformação.

Sempre digo em mentorias, cursos ou falando com outras mulheres para trazê-las para tech: “Estude, leia, se aprofunde, não seja rasa. Discuta e procure gente melhor que você pra te ensinar. Não perca a oportunidade de estar em mesas técnicas. É isso que traz valor”. 

Eu era aquela que ficava lendo o protocolo, mesmo não sendo programadora. Quando estava vendendo, queria mostrar que tinha autoridade sobre o assunto e isso me fez crescer. Porque eu estudava e surpreendia, entendia tecnicamente do que estava falando. 

Quando você começou a liderar equipes? Quando saiu desse lugar de conhecedora, mais operacional e foi para gestão de pessoas?
Um dos meus mentores me disse que eu seria uma boa líder quando deixasse de ser só a boa técnica e começasse a ensinar os outros. Eu lembro exatamente dessa conversa. Na Fidelity eu era sozinha. Na Equifax, foi a primeira vez que eu tive um time – 25 pessoas – e eu estava com 25 anos. 

Na Gemalto eu tinha um time pequeno – cinco pessoas. Quando fui para a Mastercard, fui com o objetivo de montar a área de Marketing Development pra fazer coisas diferentes dentro da empresa. E fui montando o time, que chegou a 20 pessoas.

Quando fui pro Santander aconteceu um negócio interessantíssimo. Quem me entrevistou lá foi o atual presidente Mario Roberto Opice Leão. Era uma sexta-feira e ele disse: “Você vem pro banco. Não sei pra onde, mas você está contratada”. Eu achei esquisito, mas ele era o vice-presidente e eu queria muito trabalhar num banco grande.

Aí, na segunda-feira, a Vanessa Lobato [vice-presidente do Santander Brasil] falou: “Achamos uma vaga pra você. Você vai ser vice-presidente da Getnet”. A Getnet já tinha 480 funcionários! Foi uma mudança muito grande. Eu já tinha liderado um time, mas nunca tantas pessoas. E foi muito natural

Depois, decidi enxugar bastante esse time. Tinha muita gente ao redor do Brasil com eficiência baixa. Está no meu DNA buscar muita eficiência em processo, em gastos, porque, hoje, se não for assim, você tem que repassar isso pro cliente. No final, é o consumidor que paga a conta. 

Na Getnet, entrei com esse time imenso e fui reduzindo. Na minha saída, tinha 280 pessoas – 200 a menos – performando quatro vezes melhor, tanto em termos de receita quanto de share

Hoje, na Qsaúde temos 210 funcionários e vejo concorrentes nossos com quatro vezes mais funcionários. Acredito muito em ter um time muito eficiente, com profissionais de alta performance 

Volto sempre ao ballet, à metodologia alemã, ao tema de performar bem, de trabalhar KPIs, de estar no dia a dia acompanhando… Isso gera eficiência, faz o time estar mais engajado e produzir melhor. 

Quando você passou a se interessar por Ciência de Dados e Analytics, áreas vitais para qualquer empresa hoje?
Foi na Equifax [entre 2005 e 2007], que se definia como bureau [de análise de crédito], mas fazia com que você trabalhasse os dados muito ativamente. Lá, tive um gerente de Produtos chamado Eduardo Ramalho, um dos papas em dados e CRM. A gente passava tardes olhando quais dados tínhamos e o que podíamos vender dali. 

Começamos a criar produtos. Por exemplo, com base nas informações, conseguíamos geolocalizar pontos para a Amex botar novas máquinas POS. Como? A gente transformava o cadastro negativo [onde não havia POS] em um cadastro positivo [onde podia ser instalado POS] e entregava isso 

Outro exemplo: a gente pegava quem devia no B2B, fazia um cruzamento de dados, “higienizava” a base e mandava um novo boleto para pagamento, já com um desconto baseado na dívida da pessoa. Ficávamos inventando moda para vender esses dados. 

Na Gemalto isso se perdeu, porque lá eu fazia o plástico e os dados que estavam dentro do chip. Não tinha muita inovação ali, nesse sentido…. 

Só que aí fui pra Mastercard, que é uma mina de ouro de dados. Você não sabe quem é o consumidor, mas sabe onde aqueles BINs [Número de Identificação Bancária, na sigla em inglês] transacionam. 

Como eu estava na área de novos negócios, tive a possibilidade de vender esses dados para varejistas, farmacêuticas. Eu não tinha os SKUs, mas tinha [a informação sobre] onde pessoas utilizavam o cartão. 

Nessa época começou a expressão ‘data is the new oil’. Mas a verdade é que, até hoje, as pessoas têm dificuldade de trabalhar com esses dados e tangibilizar na ponta

Trazendo aqui para a Qsaúde, somos a primeira healthtech que trabalha com interoperabilidade FHIR – Fast Healthcare Interoperability Resources, com alguns de nossos parceiros. Isso é o auge da tecnologia no momento. 

Quando cheguei, eu disse que tinha uma missão com o time de TI – ser o operador mais interoperável do Brasil. Se tiver alguém que disser que faz mais, eu não durmo! Por quê? Porque a gente quer ter esse know-how de interoperabilidade de agendamento e de prontuário — tudo dentro das regras da LGPD, claro, a gente trabalha com a autorização do cliente. 

O meu ponto é: quando você traz isso, começa de fato a trabalhar em cima de dados. Por exemplo, a Dasa, que é um grande parceiro nosso, sempre comenta que 42% dos exames transacionados na base dela não são nem retirados! 

Aqui, a gente atua corpo a corpo para que o cliente saiba que esse exame está pronto e para que ele volte no médico e faça o que precisa ser feito. Nos prontuários, já colocamos réguas mais simplificadas para a pessoa saber que existem alguns [exames] preventivos que precisam ser feitos, principalmente na hora que se recebe a diagnóstico e check-ups. 

Eu trago essa experiência de dados do que já vivi… A Getnet foi a primeira empresa interoperável com todas as bandeiras do Brasil. Então, quando você traz essa experiência do mundo de pagamentos pra cá e tem essa rede grande de parceiros, é uma mina de ouro. 

Todo mundo aqui [na Qsaúde] brinca que o comitê de TI – que se reúne toda quinta à tarde – é a minha disneylândia. A gente trouxe a Salesforce pra cá e nossos dados hoje estão no Health Cloud, que é o que tem de mais top pra isso 

Ser interoperável com FHIR dentro do Health Cloud dá pra fazer muita coisa. E não ter um legado é espetacular. Precisamos crescer rápido, sim. Mas o fato de a gente ainda estar com 14 mil vidas nos permite ter muito mais controle e conseguir fazer muito mais.

A Mastercard foi outra disneylândia pra você? Era uma época em que as operadoras de cartão de crédito mergulharam na inovação aberta… Você viveu isso? Ou acompanhou o movimento mais de longe?
Eu fui contratada para montar a área de novos negócios exatamente pra isso – começar a fazer relacionamento e projetos com empresas não-bancárias. 

Se formos lembrar, no passado os bancos se uniram pra trazer as bandeiras [de cartão de crédito] ao país. Aí começaram a aparecer Mercado Pago, PagSeguro, Renner e Riachuelo como emissores… se tornou um novo negócio.

Parte do que eu fazia era contato com não-bancos, para fazer projetos com empresas como Uber, Rappi, iFood, conseguir digitalizar as pessoas, trazer essa preferência para a bandeira e trazer novas tecnologias para fazer a conexão com esses fast movers, que são digitais. 

Por muito tempo, as bandeiras ficaram aficionadas em só gerar, emitir o cartão, mas claramente iniciaram um movimento – e eu já estava lá e participei dessa transformação – de agregar novos valores e levar novos negócios para, de fato, criar um impacto 

Hoje, ter um cartão de crédito não significa muita coisa. Se você não leva outro serviço e não dá benefício, não gera preferência. Se você não faz com que seja algo importante, se torna só uma commodity — e o consumidor não vê nada de valor. 

Parte do que as bandeiras têm feito – agressivamente, até – é comprar outras empresas, trazer novos modelos para fazer o open finance cada vez mais próximo delas. Porque essa intermediação vai acontecer. 

Vi há pouco o presidente do Banco Central comentando que o PIX já passou vários outros meios de pagamento, então acho que as bandeiras têm sim que se reinventar. E parte dessa mudança de novos mercados se deu por isso. 

Digo que esse é um business maravilhoso. Você entra na bolsa de valores e é um segmento que não cai, pode reparar! Não é nem um blue chip [ações de maior valor de mercado da Bolsa de Valores, com marca e modelo de negócios já consolidados], é um “golden chip diamond”.

Na Getnet você teve a possibilidade de experimentar a interoperabilidade e, poucos meses depois que você entrou lá, o Santander assumiu totalmente a operação da startup…
O mindset da Getnet sempre foi o de fazer a maior e mais rápida conexão, permitir que a POS da Getnet fosse o mais interoperável, porque é dessa forma que você traz mais volume, consegue ocupar mais rápido as diferentes regiões e as necessidades específicas. 

Isso é o oposto do que você vivia na Mastercard, certo?
Exatamente. Assim, a Mastercard foca em você trazer todo o fluxo para ela. A Getnet, não. Ali você apoia diferentes negócios fazendo cash in e cash out. Parte do DNA da Getnet sempre foi levar a tecnologia, interoperabilidade e facilidade. 

E eu trouxe isso aqui para Qsaúde – o aprendizado de como você conecta, como faz da melhor forma, como traz os dados e os transaciona com segurança e sem burocracia.

Foi na Getnet que você passou a fazer o “arrastão” – ir pra rua com o time para falar com o cliente? De onde veio isso? E por que fazer isso?
A história está ficando famosa. Acho que eu vou virar a mulher do arrastão [risada]! Isso tem a ver com a minha vibe de estar dançando sempre. Lá no Santander a gente fazia isso em nível Brasil, tinha uma força muito potente… 

Sempre gostei muito de me movimentar, é parte do meu trabalho não só por eu ser da área comercial — é o meu perfil. Quando entrei no comitê do Santander, eu era a única mulher… e não sou uma mulher calma: eu agito, faço confusão, trago bastante energia para o tema 

E eu dizia que precisávamos dar um jeito de fazer um movimento no Brasil todo, para engajar… O Santander é um banco de varejo, que gosta disso. É constante acontecerem muitos movimentos diferentes ali dentro. 

Acho que o nome arrastão era da Getnet, veio junto, mas eu nem sei mais de quem é a autoria, porque virou um negócio muito grande. A gente fazia isso com muita frequência.

Como funcionava o arrastão?
É um dia que você coloca a empresa inteira na rua pra falar com o cliente. E não é um tema de venda, tem um intuito diferente. É um dia que você sai pra entender o que está acontecendo, qual é a necessidade do cliente. 

No dia que fizemos aqui na Qsaúde, saímos todos vestidos de roxo: gente de facilities, do RH, de TI, de operações, gente que só fica no telefone… 

Fomos pra rua escutar o que os clientes precisam, se as pessoas conhecem a marca, se os hospitais parceiros são conhecidos, se o cliente sabe o que é prevenção…?

Antes de sair, fazemos um treinamento para que criemos um impacto inclusive nos ambientes aonde vamos. E é impressionante a energia que isso traz para dentro da empresa.

Vou dar um exemplo do arrastão de agora. Por pesquisa, soubemos que a Qsaúde ainda não é conhecida em alguns bairros. Fizemos uma divisão por geolocalização e percebemos que 38% das pessoas com quem falamos não sabiam que nós somos um plano de saúde – que é uma coisa básica! 

A agência [de marketing] falava de prevenção preditiva, e as pessoas não entendiam, achavam que a Qsaúde podia ser telemedicina, achavam que não era um plano que tinha hospital… O nosso time ficou impressionado de ter de explicar isso na rua. Até mudamos a nossa campanha de marketing, que vai sair em setembro, para essa linha.

A magia disso é enorme. Se você me perguntar: tem funcionário que não quer ir? Digo que tem, e não é obrigatório. Mas garanto que mais de 90% deles vai voltar no próximo, porque foi um dia que engajou o time, as pessoas sentiram orgulho de vestir a camiseta da Qsaúde 

Adoro estar na rua. Foi ótimo ver meu time engajado, é uma realização. E para o time teve um impacto de entender que estamos fazendo uma transformação na vida das pessoas — e temos como missão democratizar esse acesso.

Você está no comando operacional da Qsaúde desde 2021. Depois de 19 anos no mercado de pagamentos, você se sentiu recomeçando?
Total! Eu não teria razão para sair do Santander, estava super bem-acolhida e adaptada, mas digo que o bichinho da saúde me picou. Foi paixão à primeira vista pelo projeto. 

Depois da primeira conversa com o Júnior [José Seripieri Filho], pensei: meu Deus do céu, será? A partir dali eu já não consegui dormir, pensando quanto essa mudança poderia ser divertida… tensa, mas divertida.

Júnior é um cara extremamente visionário, está sempre muitos passos na frente na área de saúde complementar, ele conhece bem os caminhos: o que dá certo e o que não dá. 

Não foi uma mudança fácil, mas quando ouvi o projeto, a ambição dele e entendi o quanto eu poderia fazer a transformação do segmento e de fato impactar a vida das pessoas, achei que fazia sentido para um recomeço

Sabe aquela coisa da síndrome da impostora – a mulher quer “ticar” todos os itens do checklist da cadeira antes de aceitar? Como não tenho essa síndrome, decidi aprender, estudar, me dedicar. Fui falar com gente que sabe do assunto. 

Botei como meta pessoal penetrar muito rápido no segmento. Júnior e o time da Qsaúde me ajudaram muito, mas foi uma decisão em que pulei sem paraquedas, pra ver “o que dava”. 

Aqui no Brasil o conceito do médico de família como o principal ponto de contato com as famílias – ele leva a pessoa para dentro do sistema de saúde com um cuidado diferenciado e centralizado –, enquanto uma empresa tem os dados do paciente é bem novo ainda, certo? Quais os maiores desafios de popularizar esse modelo de prevenção em detrimento do emergencial?
A nossa régua começa depois que o cliente pagou o boleto, é quando de fato ele entra como cliente dentro da base. A gente quase estressa o cliente até ele fazer essa primeira visita ao médico de família. 

Se ele baixou o app, a gente consegue fazer essa régua digitalmente. Se ele ainda não baixou, temos que fazer isso por WhatsApp; alguns clientes em certa faixa etária não querem o WhatsApp, então contatamos por telefone. 

Até a pessoa fazer a primeira visita no médico de família, ela nos acha o plano mais chato da América Latina, porque enchemos o saco dela. Ela diz que não está doente. E nós respondemos: “Eu sei, mas você precisa ir no seu médico de família pra começar sua jornada, a gestão da sua saúde” 

Tenho o exemplo dos funcionários da minha casa… nunca ninguém tinha pedido pra eles irem ao médico. Ao contrário, para eles conseguirem ir era um drama, é difícil hoje você conseguir um atendimento eletivo. Então, tem essa primeira jornada de explicar como isso se dá, é um desafio. 

Atualmente, nos primeiros 30 dias, temos, em média, 60% dos clientes acessando o médico de família. Ainda temos 40% que fogem. Se depois de 30 dias, o cliente não entra na nossa régua digital – e-mail ou WhatsApp –, começamos com a régua dois cujo contato é feito por telefone. A partir dessa primeira visita, começamos a ter de fato, uma jornada diferenciada. 

Nós temos os índices de ida diretamente na emergência, entrada de PS, de quatro pontos percentuais abaixo da média do mercado. Por hábito, as pessoas vão pra emergência “por qualquer coisa”; ao chegarem, tem fila, demora… Aqui na Qsaúde a gente ensina que elas têm a facilidade de apertar um botão e serem atendidas por telemedicina, sem sair de casa. A média do botão do mercado é de 2%, a nossa é 14%.

(O botão Qcuidado no App funciona como um pronto-atendimento por vídeo, com atendimento médico 24h por dia, para casos de dor de cabeça, dor de garganta, sintomas de resfriado etc.)

Acho que é uma jornada dupla – emergência e prevenção. A gente incentiva que essa emergência seja feita digitalmente, pela facilidade do cliente. E o cliente que aprende isso não volta pra emergência no hospital, porque é muito fácil

No botão Qcuidado, temos 79% de resolutividade. Alguns são encaminhados e outros nem vão até a emergência. A gente controla esses KPIs da jornada pra melhorarmos e fazermos com que a experiência seja boa. Esse é o nosso foco.

A dificuldade de popularizar esse modelo preventivo com médicos de família é apenas com o consumidor final? ou existe algum tipo de adaptação, de jornada educativa que precisa ser feita com os médicos?
A gente escolheu bem os nossos parceiros. Quando começamos, nossos médicos de família eram todos da Clínica Einstein. Depois, fizemos uma parceria com a Cia. da Consulta para oferecer um plano mais barato com médicos de família, porque temos o propósito de democratizar o acesso.

A escolha dos nossos parceiros faz o sucesso da Qsaúde. Pra gente é muito bom e fácil porque não tem que, como plano de saúde, criar protocolos, contratar médicos e viver o churn [evasão de clientes]. Essas são coisas que o Einstein e a Cia da Consulta controlam, e funciona muito bem. 

Vejo alguns concorrentes nossos que montaram clínicas próprias, têm médicos próprios e fico imaginando o trabalho que isso dá, além da dificuldade de você ter certeza de que o protocolo é o correto 

Então, a aposta da Qsaúde foi de trazer os melhores parceiros pra nossa rede e, a partir daí, toda a parte preditiva eles fazem com os protocolos — e soma com os dados que a gente recebe e faz um preditivo adicional. Eu diria que é um modelo inteligente. 

Você acaba de se tornar mentora de startups na Raketo. Qual é seu objetivo? Vai mentorar algum recorte específico de empreendedor? Só mulheres, por exemplo?
Estou em um grupo de mulheres chamado Angel.Us [que foi pauta aqui no Draft], na mesma linha. Sou mentora dele e da Raketo. Estou chegando no momento do give back. 

Tenho muito trabalho aqui na Qsaúde, as mentorias não são em meu tempo ocioso. Pego horários de noite, tipo 21h, ou café da manhã, às 7h, quando tenho alguma flexibilidade

E ser uma mentoria “institucionalizada” só facilita pra que de fato venham pessoas interessadas, com objetivos específicos. 

As startups que chegam pela Raketo estão na fase de seed, buscando captação. E eu já passei por algumas fases dessa, tenho experiência. Quando você deixa [o objetivo] em aberto, não sei o quanto eu consigo aportar valor.

Sempre entro em grupos de mulheres e sou superativa nesse assunto. Pode parecer que eu protejo as mulheres, mas acredito que os desafios do nosso gênero são diferente. 

Outro dia, eu conversava com uma amiga sobre “pequenos” gestos nossos que as pessoas ainda não se tocam… 

Às vezes, na mesa de trabalho, você ouve um comentário do tipo “aquela mulher é histérica…”. Eu já corto, digo: “não vejo você fazendo esse tipo de comentário com outros funcionários” 

Quando a gente reverbera, aumenta ou puxa outras mulheres pra baixo, isso só toma um impulso maior. 

Que esforços você tem feito dentro da Qsaúde para incluir mais mulheres na área de tecnologia, uma vez que esta é uma de suas preocupações?
Como premissa de vida, em todos os lugares que eu lidero, já trago a equidade na chegada. Acho que temos de atuar no tema da equidade de gênero, raça, de cor… não pode ser um talvez. Tem de acontecer. 

Aqui na Qsaúde, conseguimos trazer isso rápido na liderança como um todo. Na área de TI, tenho um foco específico: hoje, tenho cinco gerentes, dos quais três são mulheres. Agora, eles estão dizendo que eu tenho que trazer a equidade para o outro lado [risos]. 

Não é fácil recrutar mulheres em tecnologia. É um desafio encontrar. Como estou em muitos grupos e falo muito sobre o tema, acaba que pra mim talvez seja mais fácil. Mas conheço alguns gestores que enxergam muita dificuldade por haver menos talentos 

Focando e procurando, tem muitas mulheres muito boas em tecnologia. Eu não vou dizer que foi sorte, porque eu foquei nisso e tenho muito orgulho desse time, são mulheres porretas!

Você ainda dança de vez em quando? Como abastece a alma hoje em dia, fora do ambiente profissional?
Tenho uma amiga que diz que o meu feminino está inteiro na dança. Então, sempre estou dançando – seja em casa com minhas filhas ou fora. 

Eu tenho uma brincadeira com elas. Quando entro numa loja onde a música está alta, danço com as minhas filhas… A mais velha fala: “Mãe, que vergonha!” e eu digo: “Vai… vocês estão sentindo?” e a gente vai brincando. É uma brincadeira que abastece o meu feminino, a minha alma 

Também sou baladeira. Vou a todos os tipos de show: rave, axé, sertanejo. Música e dança me reenergizam. Recomendo fortemente a quem ainda não entrou nessa que faça isso.

Acho que quando estiver me aposentando, vou voltar pro ballet. Eu sinto falta, mas o ballet exige muita disciplina. E eu não consigo fazer informal – ou faço bem feito, ou não faço.

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