Como a Batekoo vem, há dez anos, girando a roda da economia criativa entre pessoas negras e LGBT+

Cristiani Dias - 4 mar 2024
Artur Santoro, sócio da Batekoo.
Cristiani Dias - 4 mar 2024
COMPARTILHE

Quando Artur Santoro, 27, foi pela primeira vez à Batekoo, em 2015, sentiu um tipo de acolhimento incomum do que estava acostumado em eventos. 

A Batekoo era então apenas uma festa voltada para o público negro e queer de Salvador, criada (no ano anterior) por dois amigos, Maurício Sacramento e Wesley Miranda. Artur nem desconfiava que, tempos depois, ele se tornaria sócio da Batekoo e faria parte do que ela é hoje – uma grande plataforma de entretenimento, empreendedorismo, cultura e comunidade preta e LGBTQIAPN+, com a proposta ambiciosa de propor narrativas do cenário cultural e influenciar o zeitgeist brasileiro.

Artur nasceu em Boa Vista, Roraima, morou por boa parte de sua vida em São Paulo, capital, e hoje reside em Salvador. Filho de uma família miscigenada de classe média alta, percebeu ainda cedo que os espaços que frequentava, como o colégio tradicional jesuíta onde estudou, não havia outros negros além dele. 

Mais tarde, ele se formou em Ciências Sociais pela USP. Mas desde sempre soube que o seu negócio seria trabalhar com cultura. 

“A academia tem um formato engessado que afasta mesmo as pessoas, ainda tem muito que avançar nesse sentido. Quando cheguei na Batekoo, comecei a entender o meu lugar. Hoje em dia, me defino como um agitador cultural, curador e cientista social”

Com o passar dos anos, a Batekoo se expandiu, alcançando São Paulo, Belo Horizonte, Rio de Janeiro e o Distrito Federal. A festa também já realizou edições em países europeus — Alemanha, Bélgica, Espanha, França, Holanda, Portugal e Reino Unido. 

Atualmente, o ecossistema engloba a Batekoo Produções, que cuida dos eventos promovidos pela marca; a Escola B, um projeto para capacitação gratuita de jovens negros moradores de periferia e que promove debates, cursos e discussões sobre o mercado de trabalho, com mais de 30 professores contratados e 245 mil estudantes impactados; a Batekoo Records, o pilar musical que fomenta o crescimento da cena cultural negra independente; e a Batecrew, núcleo criativo que utiliza das redes sociais para reverberar a essência do projeto, através de conteúdo e educação. 

O principal evento da marca é o Festival Batekoo. Realizado em São Paulo, é um evento de música proposto por e para a comunidade negra e que já trouxe artistas de calibre como Liniker, Ludmilla, ​Gaby Amarantos, Tasha & Tracie, Fat Family, Sampa Crew, Gabriel do Borel… Outros eventos importantes são o Carnakoo, com blocos no carnaval, e o Pride Batekoo, em Salvador

Agora, em 2024, vem rolando a terceira edição da Casa Batekoo Verão, no Solar Ferrão, espaço cultural tombado no centro histórico de Salvador. Somadas, as duas edições anteriores (2022 e 2023) contabilizam cerca de 100 horas de programação musical, cultural e audiovisual; mais de 100 atrações; e aproximadamente 250 pessoas formadas pela Escola B, em cursos presenciais e virtuais. 

Artur é responsável por escolher os artistas que irão participar dos eventos, privilegiando produtores locais e fomentando a cultura negra e queer de cada região. A seguir, em entrevista ao Draft, ele fala sobre esse trabalho de curadoria, a importância de espaços de entretenimento seguros para a comunidade e sua visão sobre a cena cultural brasileira de hoje:

 

Como sua história se cruzou com a Batekoo?
Quando eu tinha 18, 19 anos, comecei a sair e a Batekoo foi um grande lugar para se estar, um lugar de pertencimento. A Batekoo foi criada em pelo Maurício e pelo Mirands [Wesley Miranda]. 

Eu conheci o Mirands quando ele se mudou para São Paulo e foi morar com um amigo. Viramos amigos também e, como ele sabia que eu já tinha um envolvimento com o movimento LGBTQIAPN+, ele me chamou para somar. 

No primeiro momento, nem era algo no sentido de trabalho. Eu não via como um rolê que seria profissional para mim, era mais no sentido do coletivo, do fazer acontecer. Passou o tempo, e a Batekoo foi se transformando até se tornar minha principal ocupação 

Agora, atuo muito na curadoria, que é uma parte onde me encontrei. Já tinha feito estágio de curadoria no Masp e atuei na exposição Histórias Afro-Atlânticas; atuei com obras da Maria Auxiliadora, Rubem Valentim. Lá, percebi a potência da curadoria enquanto instrumento para a transformação social.

A curadoria tem um papel muito importante na parte de produzir experiências, porque também é a forma como você informa as pessoas-alvo. Uma cena cultural é uma coisa muito abstrata, a cena cultural se materializa em rolês, em praças, em bares, em espaços de convivência. 

Produzir isso e manter a criação de cena cultural de forma constante, de uma comunidade, de uma rede, ao longo dos anos, em diferentes cidades – na realidade, você está ali produzindo essa experiência, informando muita coisa sobre estética e sobre os artistas. 

No primeiro Festival da Batekoo, levamos o Fat Family, que não estava em festivais no Brasil nos últimos anos e, querendo ou não, é um nome que tem uma nostalgia em todas as pessoas negras brasileiras. Teve todo um lance de apagamento, apesar de [o grupo] ter feito muito sucesso no passado 

A gente também chamou o Seu Oswaldo, o primeiro DJ do Brasil. Ele é um senhor negro de 90 anos, que ainda toca e fez o primeiro baile com discotecagem eletrônica do país. 

Como você avalia as diferenças de quando teve seu primeiro contato com a Batekoo para o cenário atual? Quais foram as principais mudanças no terreno cultural brasileiro?
Nesses dez anos, muita coisa mudou. Tivemos muitos avanços, apesar de as coisas ainda não estarem boas. 

O léxico que se utilizava para se falar em questões sociais era “democracia racial”, hoje até a Ana Maria Braga fala sobre racismo estrutural, que foi um léxico muito construído pelos movimentos negros ao longo dos últimos anos. Antes você facilmente ouvia pessoas falando que “não existe racismo no Brasil”, então teve avanços consideráveis. 

O Ilê Aiyê, o primeiro bloco afirmativo aqui de Salvador, surgiu em 1974; quarenta anos depois surge a Batekoo – e ambos são espaços afirmativos negros. Então, a Batekoo não inventou a roda: a gente faz parte desse processo histórico de criatividades negras que acontece desde que o mundo é mundo 

Muitas vezes, a cultura é algo sutil. Como diria MC Taya, “quem vê close não vê corre”. 

Vocês também atuam no setor de educação com a Escola B. Como está essa iniciativa no momento?
A Escola B nasceu em 2018 liderada pelo Leonardo Moraes. Toda essa parte educativa surgiu em um contexto de quando Batekoo começou a ter acesso e formou uma rede de pessoas do mercado publicitário, mercado de cultura e eventos. Então pensamos em como poderíamos ampliar o acesso e fazer a roda girar, para circular mais pessoas. 

A Escola B surgiu nesse contexto, tanto de pensar história e cultura afro-brasileira – que sabemos que existe uma defasagem enorme no sistema educacional brasileiro, apesar das leis de obrigatoriedade do ensino –, quanto na parte de capacitação para o mercado. 

Hoje em dia, temos muito essa visão da Batekoo como polo cultural negro; conseguimos estabelecer conexões e diálogos que pensam e valorizam a cultura negra brasileira

Agora, por exemplo, temos a Casa Batekoo aqui em Salvador, nesta época do ano; é um projeto que está no terceiro ano, e fazemos no verão porque sabemos a quantidade de turistas que vem para Salvador nessa época. 

Muitas vezes, a Batekoo é a primeira festa que as pessoas sabem que vai acontecer em Salvador, então é como podemos apresentar essas experiências e também oferecer para o público capacitação. Esse ano vamos oferecer o curso Tecnologias Culturais Batekoo, que fala sobre os processos de tecnologia de inteligência que construímos ao longo desses dez anos. 

Você comentou sobre a relação com a publicidade. Como está rolando a aproximação com esse universo? E como isso impacta no trabalho de vocês?
Hoje temos uma agência comercial que é a MAP Brasil, que intermedia bastante esse relacionamento. Eles são uma agência grande no mercado, então conseguimos circular melhor. 

Antes, até 2019, nós mesmos fazíamos esse relacionamento, mas é uma complicação, o setor de publicidade ainda é muito difícil, muito excludente. 

A MAP estabeleceu um canal no qual a gente consegue construir esse relacionamento, estabelecendo limites rentáveis para nós em relação às marcas. 

Porque uma coisa é quando o próprio artista está negociando a sua imagem, negociando a própria marca; outra coisa é quando tem uma intermediação – principalmente quando tem o fator raça na equação. É muito nítida a diferença que a gente teve de tratamento das marcas antes e após ter uma agência… 

Eles começaram a levar mais a sério, mas não somente isso, teve também um movimento nos últimos dez anos de maior cobrança das empresas a terem mais pessoas negras sendo contratadas em cargos de liderança. 

Hoje em dia, mais de 90% dos patrocínios que fechamos aconteceram a partir de uma pessoa negra dentro da empresa, ou dentro da agência, que batalhou por nós. 

Então, o fator racial ainda pega muito, porque como grande parte dessas empresas está localizada em São Paulo, é muito uma galera que estudou junto nas faculdades de elite – é uma panelinha que não vai pensar duas vezes antes de dar o dinheiro para “o festival da agência do ex-colega de faculdade” 

É incrível perceber o quanto as políticas e ações afirmativas como cotas sociais também conseguiram incluir mais pessoas negras no mercado de trabalho; nessas agências, a pressão que o movimento [negro] fez para falar sobre racismo também conseguiu pressionar a abertura desse espaço – apesar das contradições do sistema capitalista. 

Cada vez mais, conseguimos estabelecer limites, colocando como prioridade a economia – girar a roda e circular para nossa comunidade.

Falando sobre identidade: nos últimos censos, mais pessoas vêm se afirmando como negras. Você sente essa mudança gradativa de consciência racial? Como isso se relaciona com a mídia e cultura?
Pessoas negras são o tempo todo bombardeadas com representações negativas do que é ser negro no Brasil. 

Ainda hoje, a maior quantidade de veiculação de mídia sobre negros é quando acontece um assassinato, uma violência policial, então a gente sabe o quanto a violência contra pessoas negras acaba sendo mais engajada do que a celebrações e representações positivas do que é ser negro no Brasil. 

Trabalhamos muito na subjetividade e autoestima das pessoas negras. A nossa mestre de cerimônias, Juju ZL, é uma mulher negra, gorda, da periferia de São Paulo. Na Batekoo foi a primeira vez que ela usou um cropped, ela se sentiu bem o suficiente para isso 

Temos relatos de pessoas que pararam de alisar o cabelo após o evento, pois tiveram referências positivas do cabelo negro natural. 

Quando falamos de cultura, de televisão, de mídia, falamos também de disputas de narrativas, e essa disputa de imaginar o coletivo. Quando estudamos sobre a história das pessoas negras no Brasil na escola, a gente aprende que a escravidão acabou em 13 de maio de 1888 com a libertação dos escravos – e depois disso, parece que acabaram todos os problemas… 

Essa questão do censo, ainda tem uma representatividade baixa – não só dos negros, mas também das pessoas que se consideram indígenas. Mas, de fato, tem crescido no Brasil uma perspectiva de apontar a verdadeira cara do país.

A Batekoo está muito presente em São Paulo e Salvador. Quais são as grandes diferenças entre esses dois públicos e mercados?
Sempre falo que não dá para ir só em uma Batekoo para conhecer. Tem que ir em todas, porque em cada uma tem uma identidade completamente diferente, cada uma tem produtores locais que se conectam com a cena local. 

Por exemplo: na Batekoo em Salvador predomina o pagodão baiano; em São Paulo é o funk paulista, da baixada; no Rio de Janeiro, é o funk carioca; em Recife o brega funk. Então, a Batekoo é sempre muito atrelada à cena local de produção de cultura negra que existe em cada uma das cidades.

Obviamente a cidade tem estruturas e acesso a infraestruturas diferentes, como disponibilidade de CDJ [Compact Disc Jockey, equipamento usado por DJs], algumas não têm os equipamentos necessários. E tanto em questão de recurso público quanto privado [há diferenças]. 

A gente sabe que o dinheiro está no eixo Rio-São Paulo, é onde as marcas estão, e outras praças são ignoradas, a não ser que elas façam parte do target do ano. 

Mas o que percebo é que a discrepância de recursos afeta igualmente a área de publicidade e cultura – apesar da publicidade ter verbas milionárias, ela não está isenta da escassez de recursos que existe no Brasil

Hoje, temos o privilégio de conseguir cada vez mais trabalhar com marcas que entendem a relevância cultural que tem a Batekoo. Mas não somos mainstream: muitas vezes, o DJ que bomba em Recife não tem 5 mil seguidores – mas as métricas que o mercado de publicidade muitas vezes utiliza não são suficientes para lidar com essa questão de relevância cultural. 

Você conta, hoje em dia, em [apenas] duas mãos as marcas que conseguem ter essa troca cultural, e que entendem o peso e o valor da Batekoo. 

Nós temos mais de 150 mil seguidores no Instagram. Isso é considerado como “microinfluenciador”, mas qual a comunidade que estamos dialogando? Qual a cena cultural que estamos movimentando?

Qual é o valor dessa relevância cultural? Muitas vezes, isso não cabe nos números e não vai se refletir na mídia paga que o pessoal investiu. É difícil falar sobre relevância cultural, sobre cena cultural, porque ainda há métricas viciadas nesse mercado e que não vão dar conta.

Como você encara o avanço da violência contra religiões de matriz africana? E como isso se conecta com a Batekoo, já que religiosidade, música e cultura se entrelaçam?
Intolerância religiosa é parte da violência racista e estrutural. Tanto que, historicamente, os espaços [e manifestações] de sociabilidade negra, como candomblé, rodas de samba, rolezinhos no shopping, são criminalizados. 

Antigamente, as pessoas tinham mais vergonha de se assumirem macumbeiras, nos anos 1990 a galera escondia. Muitas pessoas iam à igreja e também frequentavam o candomblé, mas a parte que era pública era só a da igreja. 

Hoje tem se falado mais na mídia. A Clara Moneke esteve no Altas Horas e falou sobre sua relação com a religião, as pessoas estão falando mais sobre isso. Mas, a onda reacionária cresceu muito no Brasil, algumas igrejas evangélicas têm perseguido religiões de matriz africana. 

Os avanços nunca são constantes — quando parece que estamos avançando em um tema, estamos regredindo em outro. Esse é um lembrete de como a violência racial ainda persiste no Brasil

Já tivemos problemas com o poder público, de pessoas reclamando do barulho, reclamando que tocamos pagodão baiano… Aqui na Bahia temos uma lei antibaixaria [Lei Estadual 12.573/2012], que foi criada em um projeto feminista contra músicas que são degradantes para as mulheres, mas tem sido usada para perseguir o pagodão baiano – um ritmo de periferia que é associado à criminalidade pela sociedade.

No Brasil foi diferente do que foi nos EUA, que tinham leis segregacionistas, explicitamente racistas. O nosso racismo é mais sutil, o racismo cordial. Não são leis necessariamente segregacionistas, mas são leis operacionalizadas para atender ao racismo estrutural e aos interesses dos grandes poderes – da estrutura da branquitude, no final das contas.

Levando em conta que a Batekoo tem um braço educacional, vocês acabam preenchendo uma lacuna que evidencia a ausência do Estado. Como vocês se relacionam com o poder público? Existe alguma parceria, alguma iniciativa de apoio mútuo?
Super existe. A gente está, desde o ano passado, se embrenhando nesta área do poder público. Tanto que a Batekoo aconteceu em parceria com Secretaria de Cultura de Salvador, que enxergou nosso potencial. Conseguimos a parceria para esse espaço, que é um centro cultural do Governo do Estado. Também vamos tentar entrar na Lei Rouanet. 

Estamos apostando cada vez mais no setor privado e também no público – ainda mais no Brasil de Lula, a perspectiva de apoio é maior, depois de anos de caos e tragédia. A gente está tentando aproveitar esse timing, porque querendo ou não a cultura acompanha o direcionamento político que acontece no país. 

Levando em consideração as mudanças climáticas: como vocês lidam com a sustentabilidade no processo de produzir os eventos?
Isso é uma coisa que temos observado cada vez mais. O setor foi muito atingido por conta da Ana Clara Benevides [fã que passou mal e morreu devido ao calor em um show da cantora Taylor Swift no Rio de Janeiro, em novembro de 2023]. Então, a distribuição de água, capa de chuva e até o leque viraram itens indispensáveis. 

A gente está tentando entender como podemos nos adaptar frente a esses novos cenários, porque de um lado tem a planilha para bater, do outro tem a questão de conseguir oferecer uma experiência ainda melhor para o público – e tudo isso custa dinheiro

Mas sempre precisamos oferecer um espaço seguro, tanto afetivamente quanto na saúde. E ter responsabilidade com os resíduos, porque é uma questão de saúde pública no fim das contas. 

 

COMPARTILHE

Confira Também: