Rafael Coutinho conversa desenhando, debruçado sobre uma página incompleta, grafite cinza cobrindo o papel branco. Desenha a história da Narval Comix, editora que desde 2010 faz malabarismos para garantir seu espaço de produção autoral nos quadrinhos brasileiros. Publicou 27 títulos, um mais bonito do que o outro, e testou diversos modelos de produção, sempre buscando novas soluções para equacionar liberdade criativa e grana.
“Qual seria a alternativa, passar a vida fazendo super heróis? Desenhando músculos em roupas colantes e meninas quase peladas, depois bonecos, canecas, camisetas com os mesmos personagens? Não cara, precisamos viabilizar a arte primeiro”, diz ele, sobre a motivação que o levou a empreender.
O selo foi fundado por Rafa e seu pai, Laerte Coutinho, a maior quadrinista em atividade do país. A empresa nasce para dar vazão a trabalhos que a dupla não conseguia publicar pelas editoras tradicionais e, também, para saciar a inquietação de Rafa, artista incomodado com as relações engessadas entre autores e editoras. Ele conta:
“O que eu mais queria era ver os artistas ganhando uma porcentagem maior e um cachê não vinculado às vendas, se sentindo à vontade para criar uma arte não necessariamente comercial. O grande desafio é envolver o público com essas experiências”
Laerte queria ver onde a brincadeira ia dar, mas nunca se envolveu diretamente no dia a dia do negócio. A parte empreendedora da história é de Rafael, um inquieto por vocação. Com a Narval, foram atrás de novos trabalhos e no primeiro ano lançaram a coleção Mil, composta por álbuns com a proposta de ser só desenho, sem texto, e com liberdade total para os artistas, por menos comercial que aquilo fosse. Foi uma escolha difícil, carregada de ideologia e ingenuidade, de não saber como incindiam os custos ou a mecânica do mercado editorial independente. Aprenderam na raça.
O QUE FAZER DEPOIS DE ERRAR POR IDEOLOGIA?
Toda história da Narval é uma negociação entre as concessões necessárias para estruturar um negócio versus o sonho de uma construção artística livre. A empresa nunca fez um projeto totalmente comercial pois, no entender de Rafa, ele não poderia se voltar totalmente para este lado porque já entrou na história fechado com um grupo amplo dos quadrinistas, camaradas com mão suja de nanquim passando perrengue por aí.
Rafa, que caiu num caldeirão de quadrinhos quando era pequeno, sempre viu de perto a difícil equação do quadrinho autoral brasileiro. A Narval tem, portanto, vocação para atuar em rede, articulando e dando vazão à produção de diversos autores. O Fabuloso Quadrinho Brasileiro de 2015 é um bom exemplo disso, um álbum que pretende ser uma antologia anual com o melhor da produção nacional do ano. Após uma chamada pública, que acaba de se encerrar, trabalhos publicados até este mês foram inscritos.
Agora, haverá uma curadoria da Narval e os escolhidos farão parte do livro, a ser publicado no final deste ano. Os autores receberão três edições do álbum e a possibilidade de compra pelo preço de custo, tornando-se também pequenos distribuidores de suas obras, pulverizando a rede. A ideia é desfazer a relação editora-empregadora, autor-empregado. Aqui, ou são parceiros ou nada feito.
Este tipo de estratégia é necessária para sobreviver num setor onde a venda é dominada por grandes varejistas de livros, como Rafa conta: “O cenário é o seguinte: as distribuidoras acabaram de subir seu custo de 10 para 15%, enquanto as livrarias cobram 50%, ou 40% se você tiver acordo com a distribuidora, é um tipo de venda casada que te leva 55% do valor de capa. A impressão custa de 10 a 15% e o artista leva entre 8 e 10%, nas grandes editoras, e 12 a 15%, aqui. Sobra 15% do valor de venda para a editora. É horrível”.
Já com os pequenos a conversa é mais flexível, é possível experimentar e negociar. São mais abertos porque, avalia Rafa, “estão mais ou menos ferrados da mesma forma que a gente”. A realização de eventos nas lojas é uma das trocas praticadas entre autores e livraria. Além disso, enquanto as editoras grandes trabalham com consignação, as pequenas são mais abertas à revenda, comprando algumas unidades diretamente da editora. E foi isso que salvou a Narval em sua última crise.
No ano passado, 2014, a Narval quase quebrou. Rafa aponta a dificuldade das empresas em manter acordos ao redor da histeria gerada pela Copa do Mundo. Um dos episódios envolve a Livraria Cultura, que cancelou no meio seu apoio ao projeto Gravuras de Quadrinistas, uma série de gravuras impressas em serigrafia, vendidas por assinatura. Duas de seis obras já estavam impressas e as restantes não foram financiadas, o que representou um prejuízo de 30 mil reais. Foram em frente mesmo assim, realizaram a pré-venda de um pacote com trabalhos numerados, onde uma assinatura mensal de 66 reais garantia duas gravuras únicas todo mês em sua casa, obras de Pedro Franz e Diego Gerlach. O projeto se pagou, mas deixou aquele gosto amargo do que poderia ter sido e não foi.
DEPOIS DE QUASE QUEBRAR, NASCE UMA REDE E UM MODELO INOVADOR
Rafa, que está sempre se equilibrando entre o diretor de empresa e o artista, viu desmanchar seu plano lindo e estruturado para um 2014 cheio de tempo livre para desenhar. Teve que se virar para manter a casa de pé e, dali em diante, eles produziram muito pouco, revisitaram processos, apertaram o cinto.
Dessa experiência — e necessidade — surgiu o modelo de cooperativa com os revendedores, aposta que equilibrou as contas da empresa após a Copa do Mundo. Falamos de uma rede, ainda sem nome, que recebe as lojas especializadas como parceiras de produção. Essas livrarias compram um lote de livros antes da impressão, garantindo assim seu logo como co produtora e a revenda exclusiva daquele título. A editora ganha em tranquilidade, pois agora divide o risco da impressão com as livrarias, e também ganha em rede, se aproximando do nicho que consome seus produtos. Atualmente, 17 empresas espalhadas pelo país fazem parte dessa rede.
Assim, começa uma confederação de livrarias independentes, empresas com interesses afins que passam a olhar para seu setor por um ponto de vista coletivo. Ainda precisa se provar viável, é verdade, e os desafios não são poucos. “O mercado editorial brasileiro tem calos que precisam ser resolvidos pela minha geração”, diz Rafa. Por exemplo, a distribuição. Acredita que falta um sistema comum, que cheque de forma dinâmica a reposição dos estoques dos revendedores e integre remessas de diferentes produtores, evitando assim viagens com o carro vazio.
Hoje, a Narval realiza uma abordagem mista, produz alguns títulos em parceria com as grandes e outros com distribuição exclusiva para editoras independentes. Entende que não existem vilões, que não dá para abrir mão da FNAC, da Amazon ou da Companhia das Letras para se isolar em um nicho de quadrinhos independentes. Quer a flexibilidade para negociar com todas.
CALDEIRÃO DE QUADRINHOS
Sua busca é desenvolver modelos onde a classe artística e o público estabeleçam uma conexão direta que garanta a produção. E aí vale estratégias como crowdfunding, pré venda, assinatura, revenda, a produção de originais baratos, entre outras. O plano não é ficar rico ou ser totalmente independente, mas sim tentar honestamente lidar com o enigma liberdade versus grana e, no processo, garantir dignidade material para artistas que Rafa admira, como ele diz:
“O que mais me move é ver um cara talentoso fazendo a coisa mais pioneira, vanguardista e bela, grotesca, o mais forte que tem no país, mas com isso guardado na gaveta e o sujeito passando apuro. Não quero só publicar esse cara, quero mudar a vida dele e no processo mudar a minha também”
A Narval é uma empresa pequena, de colaboração e parceria. Rafa conversa com todos, de autores a distribuidores. O fato de ter crescido no meio dos quadrinhos certamente ajuda, e ele sabe disso. Tem amigos e parceiros por todo lado. Vira e mexe usa a própria popularidade e, menos, também a do pai para alavancar projetos. “Para mim ele não representa o mesmo que para os outros”, diz. “Ele é meu pai, não é uma mulher… bom, é, mas é meu pai. Não ficou diferente para mim, eu tenho só muito orgulho.”
Laerte atravessa um visceral processo de revisão de gênero e o faz em público, utilizando tudo como combustível para seu trabalho. O resultado é uma obra consistentemente provocadora, aclamada. Rafa tem seus fantasmas, inseguranças de autor por ser filho de um gênio, que não tiram seu sono. Cachalote, livro publicado em parceria com o escritor Daniel Galera e um dos mais belos quadrinhos brasileiros, foi o corte simbólico do cordão umbilical. A partir dali seu caminho como quadrinista estava consolidado. “Não tem como driblar ou esconder, com a impressão o trabalho fica muito evidente. Se eu fosse ruim ou mediano eu saberia rapidamente. Foi um alívio saber que eu era bom. Não genial, não a vanguarda, mas bom.”
Hoje, aos 35 anos, Rafa acredita que está com o traço mais afiado que já teve. Acabou de se mudar para o Butantã, bairro residencial de São Paulo, um pouco mais afastado do centro do que sua antiga casa na Pompeia. Valente, seu filho com Marina Pontieri, companheira há uma década, está com três anos e vai crescer em um bairro com mais árvores, bem perto da nova casa da Narval, que se mudou junto. Daqui a algum tempo o menino vai encontrar o pai ali, debruçado sobre a prancheta, e Rafa vai lhe explicar, desenhando enquanto conversa, como mantém de pé sua editora na base de suor, cuspe e magia.
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