Ela recolhe as histórias de vida das catadoras de materiais recicláveis e transforma seus relatos em uma obra de teatro documental

Marcela Marcos - 12 set 2023
A diretora de teatro Marina Zurita (crédito: Guilherme Pedra).
Marcela Marcos - 12 set 2023
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Reconhecer os próprios privilégios foi o ponto de partida da trajetória da diretora de teatro Marina Zurita, 25. Nascida e criada em São Paulo, filha “dos esquerdistas da família” (como diz), ela sempre observou, por influência dos pais, as dinâmicas sociais e suas contradições. 

Marina estudava ciências sociais na USP quando resolveu trancar e fazer teatro nos Estados Unidos. Entre 2018 e 2022, ela cursou drama na University of North Carolina School of the Arts. Foi lá que nasceu a primeira versão do que viria a ser Riven (“Ruptura”), um projeto de teatro documental criado a partir de relatos de catadoras de materiais recicláveis do Brasil.

“Riven é baseada em relatos reais, porém segue uma história fictícia. Por isso é documental e também ficção”

Para criar Riven, Marina entrevistou integrantes de quatro cooperativas de materiais recicláveis em São Paulo: Vira Lata (no Jardim Jaqueline, zona oeste da capital), Filadelphia (em São Mateus, na zona leste), Recifavela (Jardim Prudente, também na zona leste) e Glicério (na Liberdade, região central da cidade).

Cena de “Riven”, peça apresentada nos EUA e dirigida por Marina Zurita.

O espetáculo foi desenvolvido em parceria com Laila Garroni, 37, e Josanna Vaz, 39, atrizes brasileiras que Marina conheceu em Nova York — e que vivem no palco duas catadoras que encaram o dia a dia árduo no lixão e o preconceito (inclusive da própria família) devido ao seu trabalho. 

A peça teve três apresentações — duas em Massachusetts e uma em Nova York — e, em abril deste ano, recebeu um prêmio do NYC Women’s Fund. “É um edital muito concorrido em Nova York”, diz Marina. “Riven foi uma das 18 selecionadas dentro de uma pool de mais de 1 mil peças. A premiação requer que o dinheiro seja usado para produzir a peça em Nova York.”

Recentemente, Marina veio ao Brasil para aprofundar sua pesquisa. A seguir, ela fala ao Draft sobre a experiência de transpor para o teatro as histórias de vida das catadoras e sua atuação como diretora artística de uma companhia teatral de Nova York que desenvolve peças escritas por mulheres:

 

Como foi sua infância e adolescência? Onde e em que contexto social você nasceu e cresceu?
Sou de uma família de classe média paulistana, branca, com três irmãos mais velhos. 

Nunca senti que dinheiro fosse uma questão, estudei a vida toda em colégio particular, mas meus pais sempre tiveram envolvimento com política, que era o tema central das conversas nas refeições 

Eles sempre foram os esquerdistas da família, os eleitores do PT, mas eu ouvia um discurso em casa que não se confirmava na escola, onde havia pouquíssimas crianças negras… 

Vivia uma contradição relacionada a privilégios que me instigou a querer ter contato com diferentes culturas.

Quando você teve contato com teatro pela primeira vez? Chegou a trabalhar como atriz no Brasil, antes de dar continuidade à formação teatral nos Estados Unidos?
Eu devia ter uns 9 anos. Tinha um grupo de amigas que estudavam na Casa do Teatro, em São Paulo, e sempre assistia às peças delas e pirava, era uma coisa muito marcante! 

Ficava olhando sem conseguir entender como aquelas histórias tinham saído da cabeça delas, admirada com a ideia de você poder entrar num coletivo e poder criar algo colaborativamente 

Comecei, então, a fazer teatro, dança e me formei, mais tarde, no curso técnico do [centro de artes e educação] Célia Helena

Depois que me formei no ensino médio, comecei a estudar ciências sociais, mas uma grande amiga minha de infância resolveu ir para os Estados Unidos estudar teatro e eu engatei no bonde dela. 

Aos poucos comecei a entender que o que eu queria era trabalhar com direção. No Brasil tem poucos cursos específicos para dirigir.

Por aqui no Brasil, parece existir um caminho habitual em que, primeiro, a pessoa trabalha como atriz para só depois optar pela direção. Nos Estados Unidos é diferente?
Não vejo um caminho único. A diferença é que, no Brasil, há uma cultura em que os atores normalmente fazem um pouco de tudo, o que é também muito interessante. 

Mas, sim, você passa pela atuação e vai entendendo aos poucos o que quer… O que te atraiu de início não necessariamente é o que você vai fazer depois. 

Já nos Estados Unidos, a especialização do trabalho ocorre desde cedo, com mais consciência do que faz um escritor, um ator e um diretor. 

Quais foram os projetos mais relevantes em que você se envolveu no exterior? Como seu olhar foi se modificando a partir de cada experiência?
Uma grande mentora da minha vida é a [diretora e coreógrafa] Mollye Maxner, com quem tive aula e que me convidou para cocriar uma peça com ela. 

Foi muito importante para minha formação poder observá-la trabalhando, porque uma coisa é você ter aula com alguém, outra é ver a pessoa em ação. 

Observei seu processo criativo, que é algo difícil de traduzir para um estudante. Entendi melhor as etapas, quanto tempo cada fase leva, a importância da pesquisa para uma peça etc. 

Fizemos a peça Love and Depositions partindo do texto The Trojan Women, de Eurípedes, trabalhando coletivamente com um grupo de atores, em uma direção interativa na [fase mais crítica da] pandemia, o que me ensinou muito sobre limitações. Por isso considero um trabalho tão fundamental.

O projeto Mother Tongue é baseado na peça Mãe Coragem, de Bertolt Brecht e reúne relatos reais de catadores de material reciclável de São Paulo. Qual é a relação entre este trabalho e Riven, também criado a partir dos depoimentos de catadores?
Mother Tongue foi meu Trabalho de Conclusão de Curso, o primeiro momento de tentar traduzir essa pesquisa para o palco, com as restrições da própria faculdade. 

Por exemplo, cada produção deveria ter necessariamente sete alunos para que todo mundo estivesse envolvido em um projeto. Eu não podia inventar uma história com um elenco menor, não dava para escolher. 

Já em Riven, foi totalmente diferente, apesar de a base vir da mesma pesquisa. Porém, ela só existe porque eu tive aquele momento de poder “jogar a tinta na parede” antes.

Como você conheceu as atrizes Laila Garroni e Josanna Vaz, parceiras em Riven? E como se dá o processo de criação de vocês?
Conheci ambas em Nova York, onde há uma comunidade de brasileiros, principalmente de artistas, em que todo mundo se conhece. Tínhamos muitos amigos em comum, mas acho que as duas eram as únicas atrizes negras brasileiras que moravam lá. 

Quando eu estava pensando em dar continuidade à pesquisa, pensei sobre o fato de que a maioria dos catadores no Brasil são afrodescendentes e queria trabalhar em coautoria com atrizes que não fossem brancas 

Elas são mais velhas que eu e acabaram sendo, de alguma forma, como minhas “mães” no processo. Falamos muito sobre nossas identidades, sobre o que significava construir aquilo juntas. A Josanna já tinha sido voluntária na ONG TETO, no Jardim Gramacho [em Duque de Caxias, na Baixada Fluminense, onde funcionou o maior lixão da América Latina]. 

Fizemos uma residência artística de dez dias em Massachusetts e, depois, voltamos para Nova York, onde tivemos mais de 100 horas de ensaio dentro do espaço cedido por uma companhia teatral. 

Meu processo na fase inicial foi o de oferecer o mínimo fundamental para que o improviso delas pudesse florescer, enquanto o desafio delas era viver como os personagens.

O que você leva da faculdade de ciências sociais, anterior ao teatro, para as suas trocas com as cooperativas, dentro de uma perspectiva de transformação social e cidadania?
O principal aprendizado vem das aulas de antropologia – de aprender, para além da pesquisa, o que o antropólogo faz, quais são as maneiras examinar determinada comunidade com a qual entra em contato. 

Sempre digo que os conceitos antropológicos são importantes para pensar sobre qualquer área. Ainda mais no meu caso, ao fazer um teatro baseado em uma comunidade que não é a minha, na qual não nasci, que não entendo visceralmente 

Meu foco está em como fazer meu trabalho de maneira responsável.

Especificamente sobre economia circular, reciclagem etc., quais as diferenças e semelhanças entre os contextos estadunidense e brasileiro? 
Sinto que, no Brasil, a gente foi muito mais educado sobre reciclagem do que nos Estados Unidos e isso vem do movimento dos catadores, apesar de ainda ser uma comunidade invisível para muita gente. 

É mais comum ver carroceiros na rua [no Brasil], saber da existência das cooperativas, até mesmo pela televisão. Fica no nosso subconsciente, no imaginário, é comportamental. 

Nos EUA tem muito maquinário, então muito do trabalho com o lixo não é feito por pessoas. Os catadores são autônomos e têm dificuldade de agir coletivamente 

Tudo é feito a partir de uma economia informal e há caminhos impossíveis de documentar. Não há uma correlação clara de que o que é jogado no lixo pode alcançar a mão de alguém.

Entre as histórias que você coletou para Riven, qual te emocionou mais? De alguma forma os relatos fizeram com que você refletisse, por exemplo, sobre os próprios excessos?
É difícil escolher uma, mas um relato recorrente que eu percebo é ouvir de mães catadoras que, normalmente, seus filhos pequenos têm vergonha da profissão. 

Esta narrativa é muito presente na peça. Já ouvi mulheres [catadoras] dizerem que pintam as unhas com cores fortes para disfarçar a sujeira que às vezes aparece, para que o filho não note 

Isso tudo, além do preconceito da sociedade – pela relação simbiótica entre catadores e o lixo, como se fossem associados com frequência ao próprio lixo… Imagina isso na cabeça de uma criança? 

Por outro lado, trazer a questão para o espetáculo permite que a história mostre que não há vilões, nem heróis. Não dá para vilanizar a criança pela vergonha que sente.

Você também é diretora artística da companhia de teatro The Bechdel Group, de Nova York, que desenvolve e produz peças escritas por mulheres. Já esteve em grupos teatrais majoritariamente masculinos? Qual é a importância de fortalecer o trabalho de mulheres artistas, em termos de geração de oportunidades?
Já estive em projetos comandados por homens. Apesar de hoje em dia estar muito melhor, no geral o que eu percebo é uma escuta menor, porque eles ainda não sabem ouvir direito. 

Tudo acaba ficando mais complicado, já que o processo teatral é muito pessoal: são seres humanos se encontrando para criar histórias a partir de emoções e vivências 

Você lida com pessoas que vieram de suas casas para se envolver naquele projeto, e as frustrações do personagem viram, também, as frustrações do ator. 

O trabalho na Bechdel envolve selecionar peças de mulheres, cis ou trans, além de pessoas não-binárias que são ainda sub-representadas no teatro. A gente seleciona os textos e promove leituras, tendo a escuta como base. 

Quais são seus próximos planos? Existe o objetivo de encenar Riven no Brasil?
Riven ainda segue em desenvolvimento e, no momento atual, o foco é elaborar com mais profundidade os destaques de realismo mágico dentro da peça. Momentos em que as matérias recicláveis se transformam diante dos olhos da plateia, criando imagens representativas dos sentimentos internos das personagens.

Vou voltar para as cooperativas e seguir com uma nova série de perguntas. Além de contratar um grupo de catadores para ler o roteiro atual e me auxiliarem no desenvolvimento da peça enquanto consultores culturais

Pretendo aplicar para os editais que estão saindo por aqui. E a gente ainda precisa ensaiar o texto em português, criar um espaço para apresentar a peça aos grupos de catadores… A intenção é trazer a peça para as cooperativas em 2024.

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