Garotas não querem apenas se divertir: elas também querem liderar o mundo. A Força Meninas capacita, hoje, as CEOs de amanhã

Juliana Afonso - 25 abr 2022
Déborah De Mari, fundadora da Força Meninas.
Juliana Afonso - 25 abr 2022
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Quando um menino faz muitas perguntas, ele é questionador. Uma menina com o mesmo perfil é “distraída”. Quando um menino erra, está aprendendo. Já a menina, é “atrapalhada”. 

Os desafios para quem nasce mulher começam ainda na infância. Foi pensando nisso que Déborah De Mari, 40, fundou a Força Meninas, negócio de impacto social para que meninas de 6 a 18 anos possam desenvolver suas habilidades.

A percepção de que as mesmas atitudes eram tratadas de forma diferente de acordo com o gênero marcou a trajetória de Déborah desde a escola. 

“Apesar de ser uma aluna com boas notas, eu fazia perguntas que traziam desconforto. Ser uma menina questionadora, que não se acomoda com a estrutura das coisas, gerava bastante incômodo”

Foi na Universidade Metodista de São Paulo, onde cursou a faculdade de Jornalismo, que começou a estudar questões de gênero. O interesse continuou nas empresas em que trabalhava. 

“Era difícil encontrar mulheres nas posições de liderança. Quanto mais eu subia nessa estrutura, menos mulheres tinham.”

O DESEJO DE SER MÃE ENTROU EM CHOQUE COM A CARREIRA CORPORATIVA

Déborah trilhou uma carreira na área de comunicação corporativa. Começou sua trajetória em uma empresa de construção civil, passou três anos na Locaweb, depois mais quatro na Natura, onde seu último cargo foi estrategista de mídias sociais e digitais.

Por volta dos 30 anos, ela começou a pensar em ser mãe. E se viu cercada de dúvidas. 

“Naquele modelo corporativo, a maternidade parecia impossível. Eu sentia que não ia conseguir cuidar do meu filho, nem de mim e nem da minha carreira” 

Em 2015, Déborah deixou para trás o trabalho como gerente de marca na Walmart.com. No fim daquele ano, ela decidiu acompanhar o marido (convidado a trabalhar com marketing em indústrias farmacêuticas na Irlanda) e se mudou para Dublin, onde viveu por quase dois anos.

“Falo que esse foi meu passo de fé, porque foi um passo no vazio.” O fato de ser uma imigrante brasileira, esposa de um não europeu, sem a possibilidade de tirar um visto de trabalho, fez os questionamentos sobre gênero ganharem ainda mais força.

“PERDA DE VOZ”: QUANDO A MENINA SE CALA POR MEDO DE NÃO SER ACEITA

Déborah começou a estudar mais sobre liderança feminina e percebeu que grande parte das barreiras de gênero começa ainda na infância.

Duas pesquisas foram fundamentais para consolidar seu entendimento sobre o tema. Uma delas, publicada pela Revista Science em janeiro de 2017, mostra que as meninas começam a questionar sua inteligência com relação aos meninos baseadas em códigos sociais e culturais a partir dos 6 anos de idade.

A outra, publicada em 1993 após cinco anos de pesquisa, mostra que a autoestima das meninas cai três vezes mais que a dos meninos na transição da infância para a adolescência. O fenômeno é chamado de perda de voz. 

“A menina para de falar porque, se ela fala, ela pode não agradar e não ser aceita”

As consequências desse tipo de socialização podem durar por muito tempo e afetar o desenvolvimento pessoal e profissional das mulheres. A própria Déborah já teve dificuldades em se expressar por medo de ser julgada. 

“Até hoje eu me pego com vergonha de contar o que faço. E aí você percebe que o lugar da mulher na sociedade é esse, de segundo plano, de se questionar ao invés de falar ‘poxa, eu mereço isso!’”. 

COM NETWORKING E GRUPOS FOCAIS, ELA COMEÇOU A TIRAR A FORÇA MENINAS DO PAPEL

A Força Meninas nasceu em 2016 para romper com o ciclo que limita o potencial das meninas.

No primeiro ano de atuação, o foco foi investigar os motivos que atrapalham o desenvolvimento das meninas entre 6 e 18 anos. Para isso, Déborah se aproximou de pessoas de outras áreas do conhecimento, a fim de criar um arcabouço multidisciplinar.

Nesse esforço de networking, lá da Irlanda, ela pediu apoio e trabalhou com mulheres como Marina Minucci, especialista em educação não formal, e Luciana Pereira, psicóloga que ajudou a se aprofundar nas questões de comportamento das meninas. 

Já de volta ao Brasil, Déborah associou-se a Ana Carolina Garini, ex-colega do Walmart.com, que ajudou a ampliar as atividades. Neste período, contratou a socióloga Paula Pontiviani para colaborar na sistematização dos dados que foram levantados nesse período e realizar grupos focais com mães de meninas, a fim de compreender se as informações e situações apontadas pelas pesquisas internacionais também aconteciam no contexto brasileiro.

As atividades práticas começaram em 2017, com ações voltadas à capacitação de meninas para carreiras de ciências, tecnologia, engenharia, artes e matemática (conhecidas pela sigla Steam) – espaços tradicionalmente masculinos e cruciais para o futuro. 

UM PROJETO PARA A UBER SERVIU PARA CONSOLIDAR O NEGÓCIO E O MODELO B2B2C

Um convite da Uber mudou o rumo das atividades: a empresa convidou a Força Meninas para realizar um projeto de inserção de meninas no mundo da tecnologia.

A proposta consistia em conversar com os motoristas da plataforma sobre a importância de incentivar suas filhas a atuarem no setor. Em seguida, essas meninas eram chamadas para oficinas presenciais. 

“A gente chama as meninas a pensarem sobre uma coisa que elas nunca foram chamadas a opinar. Quem pergunta para uma menina como ela quer resolver os problemas do mundo? Ninguém”

O projeto aconteceu em 2018 e atingiu 330 crianças e adolescentes nas cidades de São Paulo, Campinas, Goiânia e Brasília. O feedback dos pais das meninas foi tão positivo que a Uber expandiu o projeto para a América Latina.

A partir dessa experiência, Déborah percebeu o potencial da Força Meninas como negócio de impacto social e passou a buscar parcerias com empresas de forma ativa. 

O negócio se consolidou no setor 2,5 – um híbrido entre empresa e organização sem fins lucrativos – e passou a funcionar no modelo B2B2C – mas pensando no “C” como comunidade, e não como consumidor. 

“A pessoa que está na ponta não é a compradora. As empresas patrocinam, mas as beneficiárias sempre são as meninas.”

“JUJUBA PROTEICA”: UMA BALA SUPERNUTRITIVA CRIADA POR DUAS AMIGAS CEARENSES APOIADAS PELA EMPRESA

A Força Meninas oferece três tipos de programas. O mais conhecido é o prêmio Mude o mundo como uma menina, que começou em 2019.

O prêmio tem como objetivo selecionar meninas ou grupos de meninas de todo o Brasil para ajudá-las a desenvolver sua liderança e ampliar o impacto dos seus projetos. Como forma de celebrar o Dia Internacional da Menina (11 de outubro), o evento ocorre sempre nesse mês.

No ano passado foram 25 premiadas – 10 meninas em categorias individuais e cinco grupos com até cinco participantes cada. 

Um destaque da terceira edição veio do Ceará: a dupla formada por Cellina Landim, 13, e Sophia Bessa, 14, criou a “Jujuba Proteica”, uma bala super nutritiva para combater a desnutrição infantil feita a partir da spirulina, uma microalga encontrada em cianobactérias.

Além de prêmios em dinheiro, as contempladas participam de 9 meses de capacitações com os patrocinadores do evento, incluindo cursos de educação financeira ministrados pelo Banco Original, mentorias sobre sustentabilidade e economia verde com a ERM e aulas de desenvolvimento de liderança e advocacy a cargo do Consulado Geral do Canadá junto com a Força Meninas.

As mais de 240 meninas participantes das três edições seguem conectadas por meio de uma comunidade digital, mas Déborah quer transformar as capacitações em módulos online para que todas tenham acesso ao conteúdo. 

A ARCELORMITTAL CONTRATOU A FORÇA MENINAS PARA INSERIR MAIS MULHERES DENTRO DA INDÚSTRIA DO AÇO

Outro programa desenvolvido pela empresa é a expedição Meninas curiosas, mulheres de futuro. Nele, uma carreta passa por 17 cidades brasileiras com o objetivo de incentivar meninas a explorarem as áreas de ciências e tecnologia.

O debate é estimulado por meio de peças de teatro (da Cia Realejo, parceira nesse projeto), oficinas, palestras e conversas inspiradoras com meninas líderes.

Patrocinado por IBM, ArcelorMittal e Oxiteno, o projeto era um sonho antigo que saiu do papel por meio da Lei de Incentivo à Cultura. 

“Para nós é de extrema importância levar conhecimento a crianças que não têm acesso a esse tipo de iniciativa no ambiente de educação tradicional”

A expectativa é que a carreta chegue a mais de 45 mil crianças de escolas públicas.

Por fim, a Força Meninas desenvolve programas de baixo, médio ou longo prazo específicos para empresas.

Por exemplo, a ArcelorMittal apresentou o desafio de inserir mais mulheres dentro da indústria. A Força Menina desenvolveu um projeto para incentivar que as filhas dos funcionários da companhia trilhem carreiras nas áreas de exatas. Foram quatro encontros, com atividades para reflexão sobre habilidades e futuro profissional.

A partir do contato com crianças e adolescentes de todo o país, a equipe também realiza um trabalho de levantamento de dados para, no futuro, apoiar a construção de políticas públicas para meninas de 6 a 18 anos.

DURANTE A PANDEMIA, A PARTICIPAÇÃO EM UM PRÊMIO DO MIT AJUDOU A MUDAR O MINDSET DA EMPREENDEDORA

Essas e outras atividades correram risco com a pandemia, momento em que o negócio quase faliu.

“A gente ia viajar as cinco regiões do Brasil e visitar as localidades das premiadas na primeira edição do Mude o mundo como uma menina. Paramos tudo”

As economias diminuíram e foi preciso dispensar quatro das cinco funcionárias da empresa. O ano ficou ainda mais difícil quando Déborah perdeu dois familiares para a Covid-19.

A situação começou a mudar quando ela inscreveu o negócio no prêmio MIT Solve 2020, do Massachusetts Institute of Technology, na categoria “práticas inovadoras para meninas”. 

Para a inscrição, a empreendedora elaborou um novo modelo de negócio, mais integrado às plataformas digitais. A Força Meninas foi uma das 10 finalistas em todo o mundo. 

“Foi uma virada de mindset. Percebi que tudo que a gente oferecia fisicamente podia ser oferecido online”

Déborah foi atrás de voluntários para realizar a segunda edição do prêmio, além de reestruturar os programas de formação, que se transformaram em ações de longo prazo, tornando o negócio mais sustentável. 

“Pra mim nunca foi aceitável parar. Por mais que eu não tivesse receita, continuei trabalhando com muito afinco.”

RECONHECIDA POR UMA FUNDAÇÃO BRITÂNICA, DÉBORAH TOCA A EMPRESA E ESPANTA OS VELHOS FANTASMAS

A empresa saiu do vermelho no meio de 2021. Déborah voltou a contar com uma equipe de cinco pessoas e a previsão de crescimento para 2022 é de 72%.

Com um cenário cada vez mais animador, tem sido mais fácil planejar a rotina para cuidar da empresa, da família e do filho, Bernardo, de 3 anos – e espantar os antigos fantasmas.

“Trabalhamos com desenvolvimento de pensamento crítico e habilidades socioemocionais orientadas a gênero. Não estou falando só de preparação profissional, mas de mudança de mentalidade. Estamos fazendo uma mudança sistêmica”.

O negócio coleciona reconhecimentos: além de uma das finalistas do MIT Solve 2020, Déborah foi considerada uma das 100 pessoas mais influentes do mundo em políticas de gênero pela fundação britânica Apolitical. 

Para Déborah, melhor que qualquer prêmio é ver meninas se desenvolvendo e ganhando incentivo (financeiro, inclusive) para investir em seus projetos. 

É o caso de um grupo de meninas de Minas Gerais que recebeu uma bolsa de 300 dólares do MIT para desenvolver o protótipo de um aplicativo que ensina programação e robótica para crianças em escolas públicas. 

“São apoios pequenos, mas que ajudam essas meninas a seguirem com suas iniciativas ao invés de colocarem os seus projetos na gaveta.”

 

DRAFT CARD

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  • Projeto: Força Meninas
  • O que faz: Plataforma educativa para meninas de 6 a 18 anos protagonizarem as oportunidades do futuro.
  • Sócio(s): Déborah De Mari e Dulcinea Argolo De Mari
  • Funcionários: 5
  • Sede: São Paulo
  • Início das atividades: 2017
  • Investimento inicial: R$ 38 mil
  • Contato: contato@frmeninas.com.br
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