Desde a sala de jantar da casa dos pais, em Porto Alegre, Luana Ozemela, 42, respira ativismo e assertividade em relação à comunidade afrodescendente.
Ela começou a trajetória profissional como programadora, e trabalhou na HP. Até perceber que estudar economia seria chave para desenvolver uma defesa sólida das políticas de inclusão.
Da capital gaúcha, Luana foi desbravar o mundo. Ao longo dos anos, ela já viveu em Washington, onde atuou no Banco Interamericano de Desenvolvimento – BID; depois, no Reino Unido – Southampton, na Inglaterra, e Aberdeen, na Escócia –, enquanto fazia, respectivamente, mestrado e doutorado em economia, e era consultora na Aupec.
Mais recentemente, em 2019, Luana chegou a Doha, no Qatar, acompanhando o marido, que trabalha na indústria do petróleo. Lá, ela fundou a DIMA, consultoria de investimentos de impacto que desenha estratégias de diversidade para o mercado financeiro, com a proposta de aproximar América Latina, África e o Oriente Médio.
A DIMA hoje tem seis consultores no Brasil e outros 25 fora do país, atendendo clientes como Carrefour, ICE – Instituto de Cidadania Empresarial, BID e Unicef.
Paralelamente, Luana é cofundadora da GRYND Tech, uma startup (baseada nos EUA) que desenha atualmente um aplicativo para empoderar agricultores em Ruanda; da BlackWin, uma rede de 70 investidoras-anjo negras; e da PreCapLab, que funciona como um laboratório de aceleração para fundadores diversos.
“A BlackWin fez o primeiro investimento em 2022 na Gestar – femtech de uma mulher negra [a empreendedora Lettycia Vidal]. A captação total foi de 400 mil reais e nós mobilizamos 140 mil reais desse total.”
Em outubro de 2022, diretamente de Stavanger, na Noruega, onde vive hoje, Luana aceitou uma nova missão: ser VP in Residence do iFood. Se o novo desafio na scale-up de delivery parece um ponto fora da curva em sua trajetória, ela garante que não:
“Ser VP in Residence do iFood possibilita olhar para todo o ecossistema e seu impacto, para a transformação social.”
Confira a seguir a conversa de Luana Ozemela com o Draft:
Como você chegou ao iFood e por que você aceitou o desafio de ser VP in Residence?
Eu encaro a minha trajetória profissional como se estivesse culminando no iFood. Acho que não foi nenhum desvio de rota.
Na verdade, o iFood é como se fosse a parada [estação], em que consigo colocar em execução toda a minha experiência – tanto de tecnologia quanto de desenvolvimento internacional, investimentos e redução das desigualdades.
Quando fui convidada para esse desafio, encarei como uma oportunidade de trazer todo esse conhecimento e experiência pra fazer algo que combine tecnologia, impacto social e sustentabilidade, num ambiente que é super ágil.
Sempre tive um fio condutor no meu trabalho – o propósito de reduzir desigualdades – onde quer que eu estivesse… Desde o início, no ativismo com minha família, até os espaços acadêmicos e profissionais por onde naveguei
O iFood proporciona esse ecossistema gigantesco, onde tu consegues, através da tecnologia e da educação, fortalecer cada vez mais o propósito da empresa que é alimentar o futuro do mundo. E é um propósito que dá pra ser implementado com ações muito ágeis, sem burocracia.
Digo que estava num espaço que era desenvolvimento internacional em um banco, o BID, que já existe há mais de 50 anos, onde dá pra fazer muita coisa transformacional em termos de desenvolvimento e redução das desigualdades – mas tudo demora muito tempo. Porque tem burocracia, vários níveis de aprovação, análise de risco e tudo isso engessa muito para quem tem uma mente e atitudes empreendedoras, como eu.
Consegui encontrar um lugar no iFood pra seguir nesse propósito implementando isso.
Como é o programa de VP in Residence? Em qual área você vai se encaixar dentro da empresa?
Acho importante aclarar o conceito de entrepreneur in residence. A gente trouxe esse conceito inspirado no venture capital dos EUA.
Lá, em geral, quando se faz um investimento significativo ou se está num processo de compra de uma empresa, um executivo com experiência mais do mercado tradicional e no segmento onde aquela empresa atua ou vai querer disruptar é trazido para fazer um deep dive, um mergulho, para trazer um olhar diferente.
Esse ou essa profissional traz uma rede diferente de contatos, o que muitas vezes é importantíssimo para expandir a visão daquele negócio.
Eu vim para uma posição sênior de liderança e o legal é que nesse período inicial de três a cinco meses, não tenho nenhuma amarra em termos de pensar em caixas. Muitas vezes, a pessoa vem pra fazer uma coisa, foca naquela caixa e acaba nem conhecendo as pessoas de outras áreas
Tenho uma liberdade gigantesca de trazer essa experiência diferenciada e olhar para todas as áreas da empresa. A pessoa que vem para cargos de entrepreneur in residence precisa ser super flexível.
No passado, tivemos pessoas que fizeram o período de VP in Residence, ouviram muita gente, desenharam e até mesmo testaram coisas interessantes e, depois, se tornaram VP de inovação, VP de fintech, CEO de alguma das empresas do grupo.
Ou seja: a gente nunca consegue dizer o que exatamente vai acontecer, porque é esse período de experimentação que te dá um norte.
É óbvio que pelo meu background as pessoas fazem muitas apostas – sustentabilidade, impacto etc. Mas não dá pra dizer agora exatamente que área eu tocarei e liderarei. Estou focada em ouvir o máximo de pessoas e identificar oportunidades de desenvolvimento, melhoria, consolidação da missão social do iFood, de escalonar essa missão
Acredito que em breve, junto com o Fabricio Bloisi, nosso CEO, vou definir os meus parâmetros de ação e em qual área.
Você tem um histórico de vida ligado ao movimento negro e também a discussões sobre políticas públicas de diversidade e inclusão. Acha que “consegue” ficar distante da área de DE&I e partir para outra dentro do iFood?
É um desafio, porque como líder e executiva, é preciso ter sempre muita atenção quando se entra numa posição sênior desse tipo para não ter um viés extremamente grande para uma área ou outra.
Porque tu estás ali junto com outros líderes da empresa e pensa em como continuar a consolidar e crescer o negócio, fazê-lo ter impacto social e ambiental positivo. Para isso, precisas ter um olhar muito transversal e multidisciplinar – o que a gente chama no iFood de ambidestria.
Todos nós precisamos ter a cultura de sermos donos de todas as áreas. Quando vê alguma coisa que talvez não esteja funcionando ou uma oportunidade, não pode dizer: “Mas essa não é a minha área”.
Eu estudei profundamente o tema da diversidade em nível acadêmico e trabalhei com isso praticamente toda a minha vida. Obviamente que vou perceber coisas e oportunidades nessa área em grau alto, talvez maior que qualquer outra área
E o interessante é que o tema de diversidade, desenvolvimento, impacto, inovação social e sustentabilidade é super transversal. Eu vou conversar com quem? Com o pessoal de compras e vou ter ideias, porque já li sobre isso e vivenciei o tema diversidade relacionado a compras.
Estou conversando com o pessoal de growceries, de marketplace e vai surgir alguma ideia, porque quando você passa muitos anos debruçada sobre um tema, escrevendo e estudando, é óbvio que surge.
Mas não necessariamente essa será a área que estará sob a minha liderança. E nada impede que, mesmo que DE&I não esteja abaixo de mim, eu faça contribuições.
Ouvindo você, fica a imagem de uma profissional com muita vivência em diversidade, inclusão e equidade; e também uma formação sólida na área de economia – alguém que pensa resultado, sustentabilidade financeira… A sua formação em economia te dá algo a mais para trabalhar com diversidade?
Escolhi estudar economia para fortalecer a minha habilidade de influenciar políticas públicas nessa área.
Entendo que a linguagem econômica e, em especial, dominar os dados, os números, ajuda, sem sombra de dúvida, a desenvolver o que eu chamo de justificativa econômica.
Ajuda a ser muito mais objetivo e pragmático quando a gente fala do custo da discriminação racial, do retorno de ações afirmativas, de política fiscal, política macro… Por que não colocamos o tema de diversidade e desigualdade nessa seara?
Eu adicionaria mais um elemento, além da economia, que é importante pra ajudar a fortalecer o diálogo, tanto no setor público quanto no setor privado, sobre esses temas – a tecnologia.
Comecei a minha carreira em tecnologia estudando lógica e programação. E essa base do pensamento computacional, que aprendi lá no início dos anos 1990, me ajudou na minha escolha por economia e a passar por todo o processo de mestrado, doutorado, econometria etc.
Porque quando tu tens a fundação sólida em lógica, programação, tu te tornas muito mais pragmático também e muito mais objetivo para fazer propostas e defender ideias.
Mas eu não quero, de nenhuma maneira, dizer que alguém que estudou ciências sociais ou antropologia não consiga fazer uma argumentação lógica e pragmática.
Costumo contar a história do momento “a-há” que eu tive para escolher economia. Eu tinha 19 ou 20 anos, já trabalhava com tecnologia, era programadora – mesmo antes da HP eu já trabalhava como programadora – e voltando de uma passeata em prol de ações afirmativas, estava muito decepcionada porque a gente não estava chegando em lugar nenhum gritando com holofotes, em frente da universidade.
Aí, li uma matéria e vi uma argumentação macroeconômica do quão ruim eram as ações afirmativas. E pensei: “Poxa, se a gente não conseguir falar essa linguagem, não vamos chegar muito longe em espaços de poder e de tomada de decisões… Talvez eu precise dela para que me levem a sério”
Foi assim que decidi cursar economia. Hoje, posso trazer essa combinação e colocar: “Olha, eu tenho meu propósito social e também tenho as ferramentas para alçar caminhos de argumentação e de desenho de melhores políticas e programas”.
Até mesmo o trabalho que fiz no BID foi muito focado nisso. Eu trabalhava em uma divisão que se chamava gênero e diversidade. Antes de eu entrar, ela era considerada a área das feministas e dos ativistas sociais. Era a única área em que havia indígenas e pessoas negras.
Cheguei ali no ano em que um homem branco, economista, assumiu como chefe da divisão – o que nunca tinha acontecido antes.
Ele focou muito na argumentação econômica, avaliação de impacto rigorosa de políticas públicas. E cresceu muito a área, porque começamos a conversar na mesma linguagem que o resto do banco conhecia
Acho importante, mesmo no meio corporativo, quem trabalha com temas de diversidade e inclusão também se munir dessas ferramentas. É importante falar a mesma linguagem para provar melhores programas.
Você disse há pouco que um entrepreneur in residence não traz apenas conhecimento, mas também um networking diferente. Que rede é essa que você levou pro iFood?
É uma rede que vem das políticas públicas, do desenvolvimento internacional e das agências de fomento.
Trabalhei em mais de 20 países da América Latina, com o tema de diversidade com governos nacionais e subnacionais, com bancos de desenvolvimento, com fundos de investimento, com ONGs, com centenas de atores diversos para estruturar grandes programas de equidade racial, de gênero e étnico
É uma rede superinteressante pro mundo corporativo, porque o mundo de desenvolvimento internacional é tão pragmático quanto o mundo corporativo.
Em termos de rede de contatos, ela é global e também se estende para o ecossistema empreendedor – eu sou sócia da GRYND Tech.
O que é a GRYND Tech?
GRYND Tech é uma startup estabelecida nos EUA em que sou sócia com mais três pessoas. Estamos desenvolvendo um MVP de um novo produto que vai servir agricultores em Ruanda e no resto do continente africano. Essa aplicação está sendo desenvolvida com devs na Nigéria.
É um aplicativo que visa aumentar a produtividade dos agricultores em Ruanda. É essencialmente uma assistente virtual pra que os agricultores possam se organizar melhor, se conectar com mercados internacionais e vender seus produtos com uma margem de lucro maior
Ainda não chegamos no ponto de estabelecer o modelo de receita; estamos focando em desenvolver o MVP. Já foram feitos testes em Ruanda com mais de 1 300 agricultores e agora trabalhamos na segunda versão desse teste. Acreditamos que até o final de 2023 esse produto já esteja no mercado e o modelo de receita seja definido.
E também participo de alguns conselhos – Laboratório de Inovação Financeira da CVM; Sistema B; Think Tank Social and Behavioral Change Global do UNICEF, Pacto pela Equidade Racial do CEERT da professora Cida Bento. Há pouco aceitei ser parte do conselho do Agbara, o primeiro fundo para mulheres negras no Brasil.
Tudo isso expande uma rede que tem esse fio condutor da diversidade; mas a minha atuação geralmente é melhorar a governança, melhorar a conexão entre áreas.
Apesar de eu estar num comitê de diversidade, na verdade é muito mais sobre a efetividade dos programas: como a gente mede, demonstra resultado real e evita greenwashing?
Tenho ajudado os conselhos de organizações mais nesse sentido de fortalecer a governança e mobilizar capital.
No tema de mobilizar capital, uma das coisas a que a minha carreira me levou foi: fiz uma atuação no setor público bem forte – aprovei quase 500 milhões de dólares no BID em projetos com o setor público – e me dei conta de que esses programas poderiam ter muito mais potência se a iniciativa privada viesse junto.
Quando a gente olha pro PIB global, 22% é de responsabilidade dos governos. O restante é da iniciativa privada, então ela precisa ser chamada para conversar sobre esses temas
O fenomenal do iFood é que dá pra fazer tudo, porque ele tem o setor produtivo, onde dá pra fomentar o tema de gênero e raça. Tem o tema de desenvolvimento social e de carreira dos próprios entregadores. Tem a possibilidade do tema da sustentabilidade ao promover os modais limpos.
Ou seja, tem muita coisa acontecendo no iFood já. E a gente vai continuar a estruturar e expandir várias frentes.
No começo da sua jornada, você trabalhou, entre 2000 e 2006, como engenheira de software e gerente de projetos na HP. Passados 17 anos, que mudanças mais marcantes você identifica para as empresas de tecnologia do ambiente de negócios de hoje, como o iFood?
Tem bastante diferença. Os contextos político e econômico eram totalmente diferentes, a começar pelo nível de diversidade. Naquela época, sempre fui a única trabalhando esses temas.
O interessante era que eu estava numa empresa supertradicional – a HP, que já tem quase 84 anos – e lá em Porto Alegre, nesse laboratório de P&D que começava, éramos menos de 20 pessoas. E ele cresceu sob um manto de previsibilidade: da receita – porque funcionava um pouco como um laboratório de software, uma extensão da própria HP dos EUA; do cliente; dos processos.
Eu era gerente de qualidade e tudo era muito estruturado. Não tinha muito espaço para empreender – para ser uma entrepreneur in residence.
O máximo que aconteceu lá foi um projeto que eu desenhei e a gente iniciou – o 441. Era um projeto para operar nas periferias. Ele conseguia dividir uma CPU em quatro, para que quatro crianças usassem a mesma CPU com quatro teclados e quatro mouses
A gente desenvolveu o software e era meio que o nosso projeto de impacto social. Mas o foco era realmente assegurar que o software [comercial] tinha uma qualidade e funcionava.
Quase vinte anos depois, estou numa empresa em que o espírito de inovação, empreendedorismo e imprevisibilidade é muito grande. A gente monitora crescimento, vendas hora a hora.
O iFood é uma empresa também de intermediação, então não tem a previsibilidade que havia lá na HP de vender PC, mainframe, fazer contratos de vendas… Eu não sei se a HP mudou muito (risos). Eu acho que ela cresceu, mas não sei se o espírito mudou.
Eu continuo na indústria de tecnologia, mas acredito que estou numa empresa da nova economia de tecnologia. Essa é a diferença.
Empresas que não usam mais e-mail como antigamente, que não estão engessadas por processos… É uma coisa muito mais fluída que nos dá possibilidades de inovar, de errar e acertar numa velocidade muito maior. Coisa que no passado eu não tinha, no ambiente de tecnologia onde estava
E de maneira geral, o lado econômico do setor também mudou, o acesso à capital melhorou. Hoje, a gente passa por uma recessão e o acesso está muito mais difícil. Mas dois anos atrás, havia muita disponibilidade de capital.
Por isso mesmo, fizemos projetos como PreCapLab para tentar trazer as empresas de tecnologia de pessoas negras para diminuir o gap entre as redes de quem tem o capital e as pessoas negras que estão trabalhando em tecnologia, com inovações.
Acho que o contexto econômico e a regra de previsibilidade x imprevisibilidade mudaram muito. O tema da diversidade também aumentou significativamente. Ainda temos vários gaps em termos de pessoas negras e mulheres como profissionais em tecnologia, sobretudo na alta liderança.
Todas as empresas de tecnologia precisam continuar trabalhando forte nisso, mas vejo muito mais as pessoas negras e as mulheres escolhendo essa carreira e se sentindo empoderadas para encarar essa área. Isso é magnífico. Esse é um ponto superpositivo de comparação
Eu não sei se a HP mudou, mas eu mudei de endereço – ainda dentro da tecnologia – para a nova economia.
Após essa passagem pelo mercado de tecnologia, você fez mestrado em desenvolvimento econômico e análise de política econômica, e doutorado em economia. No Brasil, no geral, quanto mais você se aprofunda no estudo acadêmico, mais se afasta do mercado corporativo. Você teve receio de que o seu nível de estudos não fosse valorizado pelo mercado? Ou que a sua área de estudos fosse “indigesta” para a elite branca?
Superprofunda, essa pergunta. Já refleti sobre isso no passado. Nunca fiquei fora do mundo corporativo por mais de um ano e meio, dois anos.
Acredito até que segui no mundo acadêmico porque tinha essa necessidade de provar para o mundo que eu conseguia fazer análises cada vez mais sofisticadas, mais robustas.
Nunca quis sair do mundo corporativo, porque sempre gostei dele. Mas senti necessidade de seguir aprimorando o ferramental e as minhas análises.
E é verdade, sim. Não é [apenas] um desafio pessoal meu: acredito que muitos economistas e profissionais negros sentem receio, ao passo que se inserem e ascendem mais no mundo corporativo, de parecerem ativistas
Aquele receio de: “Será que eu devo me posicionar sobre esse tema? Será que não vou ficar sendo ‘labelled’ [rotulada], tachada de ‘the black angry woman’? – aquele conceito norte-americano.
Esse é um tema dos profissionais negros que enfrentam uma carga pesada do racismo estrutural e sistêmico que existe no nosso país e no mundo.
Vejo isso como um desafio e também como uma oportunidade que nós profissionais negros temos, porque o nosso olhar é muito mais próximo desse problema. Mesmo alguém que não estudou esse tema sente quando é o momento apropriado de falar, mas tem medo, porque não quer parecer isso.
Tudo é uma decorrência da sociedade em que a gente vive. Se eu já tive medo de me posicionar no passado? Com certeza tive medo… Na própria HP, no BID. Hoje, já não tenho mais
Comecei no BID em um programa que se chamava Jovens Profissionais, que acelerava a carreira de executivos – 6 mil pessoas aplicavam e só seis pessoas eram selecionadas por ano. Acho que nem existe mais o programa.
A minha mentora era a vice-presidente executiva do BID, a segunda em comando na instituição, e eu conversava muito com ela sobre isso. Ela dizia: “Não tenha medo de se posicionar, mas não deixe que as pessoas pensem que eu sou o teu carteiraço”.
Era uma mulher branca, poderosa. Ao mesmo tempo que estava estimulando, ela também reforçava esse estereótipo de que nós negros precisamos ter um sponsor pra poder atingir os objetivos e crescer.
No final, ela foi uma superaliada – aprendemos muito uma com a outra. Mas as decisões que eu tomei foram em função do meu pertencimento racial.
Quando cheguei, me colocaram na divisão de gênero e diversidade. Eu disse que não queria! “Não me ponham nisso. Quero aprender sobre outras coisas. Eu já sei sobre diversidade” (risos)
E como numa posição de jovem profissional tu tens a possibilidade de rodar – assim como estou fazendo agora no iFood –, eu disse: “Quero rodar em todas as áreas, menos de diversidade, porque vou poder chegar depois lá com uma bagagem muito mais profunda sobre a instituição”.
E ela me encorajou muito nisso. Hoje, aceito que, em parte, foi por esse medo de ser associada a alguém que só sabe falar sobre raça.
Mesmo atualmente, quando me convidam para eventos, é importante que saibam que eu tenho um posicionamento forte em vários temas – que não é só sobre raça.
Isso é também algo que precisamos superar como sociedade. E vamos caminhar pra isso.
Quanto mais a gente encontrar pessoas negras e acelerá-las em todos os espaços de poder, vamos começar a ter discussões que não girem só ao redor desse tema de redução das disparidades raciais
Esse é o meu sonho grande: conseguir viver em uma nação onde a gente fale sobre desenvolvimento.
Você saiu do Brasil, morou na Inglaterra, na Escócia, no Catar – onde há também homofobia e depreciação das mulheres – e agora vive na Noruega. Sentiu alguma diferença em termos de racismo na América Latina e nesses outros países? Precisou lidar com o preconceito de formas diferentes em cada um desses lugares? Isso foi um aprendizado?
Sim, foi um superaprendizado. O racismo na Europa, de maneira geral, versus o racismo no Oriente Médio, nos EUA e na América Latina… Cada lugar tem as suas peculiaridades.
O que é igual [em todo lugar] é associar a cor cada vez mais escura à uma categoria inferior às demais. Inferior no sentido de beleza, hipersexualização… Ao assumir que, pela tua cor, você tem uma posição subalterna. Associar, de alguma maneira, raça a algo que é inferior ao resto
Mas a dinâmica do dia a dia, eu encaro como diferente. Por exemplo, os extremos – onde eu menos senti essa associação e onde mais sinto essa associação – são, respectivamente, Noruega e Brasil, além dos EUA, que coloco no mesmo nível de
carga negativa.
Pouco tempo atrás, fiz check-in num hotel cinco estrelas no Brasil e as pessoas ainda se perguntavam… Havia uma interpretação de que aquele não era um lugar para eu estar. Nos EUA, nunca passei por isso.
O mais peculiar do Catar é que lá também tem uma associação negativa pelo histórico da escravização e pela carga que a mulher negra árabe carrega – há várias palavras incorporadas ao árabe que ainda colocam a palavra “mulher negra” num lugar de escravo. E já foi tão incorporado na linguagem, que as pessoas nem veem que isso é um problema.
Ao mesmo tempo, eles conseguiram fazer com que tuas credenciais educacionais e profissionais falem mais alto do que essa associação. É por isso que, no Catar, eu fazia questão de colocar o [título de] doutora Luana em todos os cartões de visita – o PhD. Porque quando tu te apresentas dessa maneira, isso te protege, meio que te blinda com relação aos desrespeitos do racismo.
Quando era nesse ambiente profissional, em todos os lugares eu sempre fui muito bem recebida, muito bem tratada. Tem uma questão de gênero, mas nem vou entrar nisso agora.
Já no Brasil, ter credenciais é pior, porque tu és vista como “a negra arrogante” (risada). Isso é muito peculiar, tanto no Brasil quanto na América Latina
Já aconteceu de eu chegar em um lugar na América Latina para fazer reunião como especialista e um brasileiro me dizer: “O teu português é muito bom”. Aí eu disse: “Mas eu sou brasileira!”. E ele duvidou: “Não, mas você não é ‘brasileira do Brasil, Brasil’…”. Para ele, eu era uma brasileira que nasceu fora do Brasil – e, por isso, eu era tão elegante, versada e falava tão bem…
Então, existem essas peculiaridades da dinâmica e da perversidade do racismo nesses diferentes lugares. No Catar, me debrucei sobre esse tema, conversei com feministas negras, feministas árabes, feministas muçulmanas, para dialogar sobre isso, e aprendi muito.
Aprendi muito sobre o papel da linguagem, o papel da religião. É um tema maravilhoso. Até escrevi um editorial para a Qatar Foundation sobre isso – racismo no mundo árabe.
Como você avalia o insucesso na tentativa de alavancar o Roots Funding (com Oscar Decotelli, da DXA Invest, para investir em afroempreendedores), que não vingou e acabou sendo pivotado e se transformando no PreCapLab?
O Roots Funding foi um tremendo aprendizado pra nós. Eu não diria que foi um insucesso. Foi um tremendo sucesso em termos do que a gente conseguiu identificar.
Hoje, todos esses aprendizados culminaram na YA Ventures [fundo de investimento em startups de tecnologia pré seed, seed e seria A, com foco em empreendedoras negras/negros e mulheres periféricas na América Latina] com a Maitê Lourenço, que agora toca essa iniciativa. Oscar segue apoiando.
Eu decidi focar deal a deal, em fortalecer a rede de mulheres negras investidoras, porque a gente precisa de uma rede dessas para coinvestir nesse fundo. Não queria ter apenas uma iniciativa na qual focasse 100% de investimento, como era o fundo. Queria estar em várias iniciativas.
O primeiro aprendizado foi o nível de exigências e parâmetros impostos para Fund Managers de primeiro fundo. O peso que se dá pro track record de um Fund Manager de um fundo diverso vis-à-vis [“face a face” “em face de”, em francês] outros é maior.
A gente comparava o número de itens em um due diligence conosco e não observávamos o mesmo [número] com outros fundos de primeira viagem também – porém liderados por pessoas brancas…
Então, aprendemos uma dinâmica que vai além da importância do track record – aprendemos a importância de escolher bem os investidores âncoras.
O segundo aprendizado foi perceber quão imaturo o Brasil ainda continuava a ser nessa temática. Porque no processo de pitch desse fundo, éramos encaminhados para os gerentes de sustentabilidade.
E quando conversávamos com um gestor de ativos, alguém da área de asset daquele banco, ouvíamos: “Será que a gente consegue registrar um fundo na CVM colocando raça no regulamento? Não vai ser racismo reverso?”
Eu dizia que não precisam se preocupar, porque a gente podia colocar metas… Aprendemos sobre a imaturidade da indústria de investimentos no Brasil com relação a isso
Considero um sucesso, porque a partir dessa experiência do Roots Funding, o Decotelli conseguiu lançar junto a Maitê um novo fundo. E eu consegui lançar uma rede de mulheres negras investidoras, um programa que é um laboratório de investimentos que já captou mais de 5 milhões de reais para empreendedores negros – e estruturei uma cartilha para a indústria de investimentos, financiada pela ANDI, USAID e pelo ICE.
Em decorrência disso, hoje, sou membra do Laboratório de Inovação Financeira da CVM [desde janeiro de 2021]; membro do board do Sistema B [desde agosto de 2021]; Chairperson do Think Tank Social and Behavioral Change Global do UNICEF [desde janeiro de 2022]…
Tudo é parte desse processo de tentar fazer uma captação que era superambiciosa. Começamos com uma meta de 50 milhões de dólares e aprendemos muito nesse processo… é legal começar algo assim sendo tão ingênua!
Mas no final das contas, atingimos muitos objetivos. Demos uma chacoalhada no ecossistema e fizemos com que o máximo número de gestores ao nosso alcance conseguisse entender a tese de investimento de diversidade
E isso era o novo. Essa tese não estava posta dessa maneira. Agora, existe um fundo com uma tese de investimento replicável para toda a indústria financeira.
Lettycia Vidal empreendeu a Gestar para combater a violência obstétrica, mas esbarrou na escassez de investimentos em negócios fundados por mulheres. Ela conta o que aprendeu nessa jornada — e fala sobre sua nova etapa profissional.
Grávida no começo da pandemia, Thais Lopes resolveu ajudar a construir um país melhor para a sua filha. Deixou a carreira corporativa e fundou a Mães Negras do Brasil, negócio de impacto com foco no desenvolvimento desse grupo de mulheres.
Como usar o mundo corporativo para reduzir a desigualdade racial? Por meio da tecnologia, a Diversidade.io conecta afroempreendedores a grandes empresas que desejam tornar sua cadeia de fornecedores mais inclusiva.