Na infância, Jhoniker se refugiava nos games. Hoje, autodidata, desenvolve um jogo online ambientado no Rio e integrado à blockchain

Bruno Leuzinger - 9 ago 2023
Jhoniker Bráulio, fundador da Fist Phoenix.
Bruno Leuzinger - 9 ago 2023
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Uma doença infecciosa obriga o governo a isolar os moradores do Morro do Vidigal, no Rio de Janeiro, para evitar que mais gente se contamine. Os infectados se tornam agressivos e atacam os demais. Aos enclausurados ainda saudáveis só resta procurar recursos, formar alianças — e contra-atacar.

Parece a sinopse de um filme de apocalipse zumbi, inspirado talvez pela tragédia recente da Covid-19. Na verdade, é o ponto de partida de Rio — Raised In Oblivion, um jogo de sobrevivência online, ambientado na favela carioca, com design gráfico que emula os becos e paisagens reais da comunidade.

A escolha do Rio como cenário vem da vocação da cidade para cartão-postal. O jogo (ainda em desenvolvimento, mas já disponível em modo “lista de espera” no site da Epic Games) surgiu como um projeto em conjunto de dois irmãos do interior de São Paulo, Jhoniker e Bannaker Braulio. 

“A gente não tem nenhum tipo de curso técnico ou faculdade. Sempre fomos muito dedicados, procuramos vídeos…”, diz Jhoniker, 30. “Foi tudo muito na marra.”

A história deles, como você vai ver, daria um filme. Ou um videogame. 

NA INFÂNCIA, O VIDEOGAME ERA UM REFÚGIO CONTRA AS DIFICULDADES DO DIA A DIA

Naturais de Franca, a 360 quilômetros da capital paulista, os rapazes nunca tiveram vida fácil. Jhoniker conta:

“Meu pai trabalhava como serralheiro, minha mãe fazia faxina pra fora. Então a gente cuidava de casa, além do trabalho – ali pelos 12, 13 anos, comecei a trabalhar na serralheria do meu tio” 

Nos sábados de madrugada ele ainda ajudava o avô, feirante. “A gente saía às 4h30 da manhã, ia montar a feira e ficava até meio-dia.”

Futebol e videogame eram, nas horas vagas, as distrações possíveis. O joystick passava de mão em mão entre os irmãos. Com a grana curta, o console estava sempre defasado:

“Começamos com Atari na época em que já estava saindo o PlayStation 1. Quando veio o Play 2, a gente conseguiu ter um Dreamcast”, diz Jhoniker, rindo.

Mais do que uma brincadeira, funcionava como uma válvula de escape:

“O videogame sempre foi um refúgio na nossa infância. As contas vêm, as dificuldades vêm — a gente morava de aluguel e quase todo ano precisava se mudar de uma casa para outra –, e o jogo tira você da realidade naquele momento” 

Sonic, Super Mario e Extreme Racing foram algumas das fitas favoritas. Quando Jhoniker tinha uns 15 anos (“aí já foi a época de Counter Strike, jogo de tiro”), ganhavam força os jogos online.

“A gente não tinha condição de ter um computador”, diz. Para contornar o problema, ele torrava nas lan houses os trocados que recebia ajudando o avô na feira. “Naquela época, lan houses faziam muito sucesso, eram 2 reais a hora.” 

UMA INFECÇÃO NO PÚBIS ABREVIOU O SONHO DE SER JOGADOR DE FUTEBOL

Na adolescência, Jhoniker perseguiu o sonho de muitos brasileiros e tentou a sorte nas categorias de base do futebol. 

Foi goleiro do Batatais, da cidade vizinha a Franca, e depois chegou ao Paraná Clube, de Curitiba. Porém, uma infecção crônica no púbis abreviou sua carreira futebolística:

“Nessa época em que me machuquei, voltei para Franca e aí me vi perdido. Você coloca forças, imagina seu futuro dentro daquilo ali que você está fazendo…”

O ano era 2010, ele tinha uns 18. Ele terminou o ensino médio e voltou para a serralheria. O trabalho era árduo; o salário, embora “interessante”, foi, com o tempo, ficando insuficiente:

“Como sempre me cobrei muito, comecei a achar pouco. A situação lá em casa já não estava tão fácil: meu pai, a idade chegando, o serviço diminuindo… A gente começou a passar um pouco de dificuldade.”

A PRIMEIRA TENTATIVA DE EMPREENDER ACABOU DANDO ERRADO

Alguns anos depois, quando decidiu empreender, Jhoniker foi empurrado pela necessidade, como acontece com tanta gente no Brasil.

Na sua cabeça, um alarme disparava: preciso fazer alguma coisa

Ele já criava uns vídeos de react, comentando videogames, e era remunerado em criptomoedas. Passou a vasculhar as redes atrás de conteúdos sobre negócios envolvendo tecnologia.

“Comecei a pesquisar muito nos grupos de investimento, de empreendedorismo… Tinha muita gente com muito projeto bom, só que sem dinheiro para pagar um programador e desenvolver”

Foi nessa época, também, que comprou seu primeiro computador (“era bem simples, meio lento, às vezes pegava um ‘foguinho’ nele ali”, conta, rindo). E por fim encasquetou de montar uma empresa de tecnologia com o irmão mais velho, Rhaicmer, que sabia programar.

A Iotech, a empreitada dos irmãos, nasceu com a ideia de ser uma empresa “fora da caixinha”. Jhoniker investiu parte de suas economias no negócio. Que, porém, teve vida curta e não foi adiante.

O IRMÃO MAIS NOVO DESENVOLVEU A VERSÃO BETA DE UM VIDEOGAME – E JHONIKER FOI ATRÁS DE INVESTIDORES

Enquanto isso, Bannaker, irmão mais novo de Jhoniker, vinha tocando seu próprio projeto paralelo: criar um videogame. 

“Ele trabalhava de pedreiro e [depois] varava a noite. Começou a trazer pessoas para trabalhar com ele e desenvolver um projeto muito legal, na época se chamava The Last War, ‘A Última Guerra’”

Com parcerias, fuçando aqui e ali, Bannaker aprendeu na marra a criar o seu jogo de sobrevivência. Em 2016, tinha uma versão beta – e uma comunidade online acompanhando o processo e dando feedbacks.

Porém, o irmão levou uma rasteira de uma das pessoas que vinha colaborando e teria roubado seu potencial investidor. Bannaker entrou em depressão. Jhoniker, que vinha do insucesso com a Iotech, resolveu dar a volta por cima ajudando o irmão a se reerguer.

“Peguei os números que o Bannaker já tinha — ele teve 15 mil seguidores, vídeo que bateu 50 mil, 100 mil visualizações –, coloquei numa apresentação e fui atrás de um investidor”

Um colega, designer, montou um pitch deck. E Jhoniker ia vendendo o peixe: “Isso é o que a gente fez sem nada no bolso, zero. Trabalhando de pedreiro, meu irmão montou uma comunidade com 15 mil pessoas. E jogo é comunidade”.

ENQUANTO AS CONTAS SE ACUMULAVAM, ELES RECEBERAM UMA “MISSÃO IMPOSSÍVEL” DE UM POTENCIAL INVESTIDOR

Uma hora, a resposta chegou: Jhoniker, vi o documento que você fez, gostei da proposta, quero marcar uma reunião.

A essa altura, já era 2019. Na reunião, Jhoniker recebeu uma “missão impossível”: se a versão demo ficasse entre os dez melhores jogos indies da Brasil Game Show, que ocorreria dali a pouco mais de um mês, o investidor botaria a grana que eles precisavam no negócio.

A Brasil Game Show é a maior feira de jogos da América Latina. Bannaker quase caiu pra trás. Jhoniker repete as palavras do irmão:

“Cara, você é louco… Trinta dias? Tem jogo grande que gasta milhões e cinco anos [para ficar pronto]. Você quer fazer uma demo em um mês pra gente levar na BGS e ganhar entre os dez?!”

Jhoniker convenceu o irmão e conseguiu, do investidor, dois computadores para aprimorarem o protótipo. A essa altura, seu PC já tinha pifado, a grana andava curta e as contas, atrasadas:

“Quando batiam no portão, a gente gelava, porque podia ser para cortar a água, ou a luz, ou a dona [do imóvel] pedindo a casa… Imagina estar preocupado com isso e ainda ter força para sair daquela situação?”

COMO OS DOIS IRMÃOS BRILHARAM NA BRASIL GAME SHOW, A MAIOR FEIRA DE JOGOS ELETRÔNICOS DA AMÉRICA LATINA

No corre, os irmãos terminaram tudo “aos 45 do 2º tempo”: no próprio dia do evento, uma hora antes de embarcar para o Expo Center Norte, na capital paulista. 

Levaram os computadores e a demo online, um player-versus player para ser testado por dois visitantes, um tentando matar o outro. “O pessoal fazia fila para jogar”, diz Jhoniker. “Chegamos a atrapalhar o estande do Banco do Brasil de tanta gente.”

Foram cinco dias de feira. Segundo Jhoniker, devia haver 30 ou 40 demos concorrendo na categoria. Eles precisavam ficar entre os dez primeiros, ou nada de grana. Até que anunciaram o vencedor: Rio – Raised in Oblivion.

“Era a gente. Ficamos em primeiro lugar como melhor jogo [indie] em desenvolvimento da América Latina… Foi a melhor sensação que eu tive em toda a minha vida. Foi uma loucura, foi mágico, coisa de outro mundo” 

O filho do investidor tinha acompanhado os rapazes. Em meio aos pulos de alegria, ligou para dar a notícia. O pai festejou: “Pega esses meninos e leva numa churrascaria, eles podem gastar o que quiserem, é por minha conta”.

O SONHO DE JHONIKER É TRANSFORMAR O JOGO, AINDA EM DESENVOLVIMENTO, EM UM “METAVERSO VIVO”

Aquele triunfo, afirma Jhoniker, foi o início de um novo ciclo. Logo de cara, o investidor depositou um dinheiro na conta e ajudou a família a pagar as contas em atraso.

De lá para cá, Jhoniker e Bannaker conseguiram um novo investidor e foram construindo o jogo, para além da demo. O conceito inicial também se expandiu, e muito.

Com uso de blockchain, o foco e a ambição hoje são desenvolver um token próprio, que possa ser adquirido dentro do jogo, convertido e usado para adquirir produtos aqui fora, no mundo físico, de marcas que anunciariam dentro do game através de NFTs.

Complexo? Resumindo, diz Jhoniker, a ideia é criar um metaverso “vivo”: 

“Qual é o maior problema do metaverso? Você precisa ter utilidade para as pessoas entrarem nele. E o nosso jogo faz isso muito bem, porque o cara já vai estar jogando, então a gente já usa o espaço [do jogo] para fazer os merchandisings” 

Ainda há desafios de tecnologia e grana a ser captada. Mas Jhoniker vê com otimismo o futuro da First Phoenix Studio, a desenvolvedora de games da qual ele é o CEO.

“O Brasil tem muito desenvolvedor bom, mas ainda não tem uma empresa referência [no setor de games]. A gente chegou para ocupar esse espaço.” 

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