“O que de pior já me aconteceu se transformou no melhor de mim”

Manuela Franceschini - 2 fev 2018Manuela em Darling Harbour, um dos ícones icônico da Australia.
Manuela em Darling Harbour, um ícone da Australia.
Manuela Franceschini - 2 fev 2018
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por Manuela Franceschini

Todo mundo tem uma Austrália. A minha calhou de ser literal — essa do outro lado do mundo, na Oceania, com tubarões, cangurus, coalas, praias maravilhosas e um horizonte tão amplo que me fez esquecer das tragédias que me acompanhavam nos dias anteriores à mudança. Eu poderia dizer que o Brasil estava em crise, que já queria mesmo fazer um mestrado, que me enviaram para cá para ser correspondente internacional, mas essas são só possibilidades da versão oficial. Extra-oficialmente, eu te conto: só queria ir para o lugar (seguro) mais longe que o mapa mundi me permitisse. Eu vim para a Austrália para me salvar.

Não tive muito tempo para me despedir. Ficaram para trás o Rio de Janeiro, minhas coisas, o apartamento que eu adorava, os grandes amigos, um emprego na TV, o carro, os discos e os livros, uma vida toda. Um dia eu saí de casa a caminho do aeroporto do Galeão para passar férias pagas no Japão, esquema CLT & comercial de margarina, e nunca mais voltei. No primeiro dia da viagem, ainda na metade do caminho até a Ásia, meu mundo se despedaçou na minha frente.

Vivia uma relação estável, feliz, monogâmica, heterossexual, careta, de muitos anos. Descobri que em mais ou menos três minutos tudo isso pode ser questionado, revirado, distorcido e transformado em um pesadelo. De repente, eu vivia uma separação abrupta feita de ameaças, chantagens, abusos físicos e emocionais (não posso e não quero dar mais detalhes sobre isso, pois envolve outras pessoas e questões que decidi não levar adiante). Meu instinto me disse para correr.

Corri do perigo, do abuso, do controle, dos ambientes em comum, de uma história que eu tinha vergonha de contar, do meu sofrimento, de mim mesma

Corri tanto que quando dei por mim já estava dentro de outro avião, com uma licença médica, indo encontrar minha irmã, que me acolheria por três meses em Gold Coast (cidade na costa leste australiana). Tinha crises de pânico e ansiedade, não conseguia dormir, chorava possivelmente 20h por dia e não comia. Não via saída. Não uma saída digna, pelo menos. Não conseguia pensar em voltar para o Rio, para a televisão, para tudo o que eu construí e agora era parte de um enredo tão asqueroso que, acredite, não vale a pena sequer lembrar.

Mas eu te contava no início que a Austrália tem muito céu. É um país muito jovem, solar, cheio de espaço. Nesses três meses em que eu visitava o inferno e voltava, tentando fazer com que aquela história não me definisse, entendi que me salvar não seria só correr paro outro lado do mundo. Eu precisava ser o outro lado do meu mundo. Precisava encontrar uma parte de mim que eu talvez nunca tivesse alcançado pela distância, mas que certamente estava ali, em outro fuso, acordando enquanto eu dormia.

Me matriculei em um curso de inglês acadêmico, fiz longas caminhadas pela praia e muitas selfies para me enxergar. Os amigos queridos, que ficaram no Brasil, entenderam a delicadeza do momento e faziam mais afagos do que perguntas. Também tive a sorte de poder fazer sessões de análise quase diárias e contar com o amor, a compreensão e o apoio incondicional de uma família que eu não imaginava ser tão forte. Fato é que três meses depois eu me sentia pronta para voltar — voltar para o Brasil, pedir demissão, fazer uma mala e me mudar para Austrália.

Meu plano era voltar para Gold Coast e fazer um mestrado em Relações Internacionais. Tinha conseguido uma bolsa de 25% na Bond University por causa do meu desempenho no curso de inglês acadêmico. Mas essa é uma universidade caríssima e os outros 75% eu não sabia exatamente como ia pagar.

É engraçado como as pequenas tragédias da nossa vida vão mudando os problemas de lugar. Largar uma carreira promissora, um emprego disputadíssimo, para não ter dinheiro, não me parecia um problema. Eu tinha saúde, tinha energia de novo, tinha vontade de acordar, tinha sonhos, isso era vitória. Nunca tive medo de trabalhar e a sociedade igualitária da Austrália — tão diferente do Brasil — oferecia ótima remuneração para baristas, hostess, atendentes de todo tipo. Eu teria sempre uma escolha, pensei.

Também é engraçado como o inesperado comanda a vida. A maioria das pessoas achava que eu estava louca. Como assim ia largar um emprego na Globo?

Meu chefe na época, diretor do SporTV, gestor impecável e uma pessoa extraordinária, não só entendeu minhas razões para ir embora como viu nessa decisão pessoal uma oportunidade — paro canal, para mim, para essa história que eu reescrevia. Ele me ofereceu uma vaga que não existia: correspondente internacional na Austrália. Ele criaria essa posição com a condição de que eu não trabalhasse para as emissoras concorrentes. Acordamos que meu contrato duraria o tempo do meu mestrado e que eu voltaria ao Brasil ao fim desses dois anos, para a minha vaga original.

Trabalhar como correspondente, administrando o fuso de 13 horas a frente, e me dedicar a um mestrado onde minha bolsa dependia a todo tempo do meu desempenho foi uma missão hercúlea. Mas haveria, por acaso, algo mais difícil do que aqueles dias em que eu não via saída? Jamais. Foram dois anos cheios de aventuras pela Austrália, Nova Zelândia, Ásia. Entrevistei pessoas, contei histórias, visitei lugares, aprendi sobre economia e diplomacia, fiz amigos do mundo todo, montei uma casa, me apaixonei. Fiz tudo isso muito melhor do que fazia antes.

O que de pior já me aconteceu se transformou no melhor de mim. Me tornei mais humana, mais atenta, mais presente, mais certa de que a gente pode escolher transformar a dor em algo bonito

Tenho certeza de que isso fez de mim uma jornalista melhor, uma pessoa melhor. Sem qualquer dúvida, me fez saber o que quero e o que não quero na minha história. Me fez saber que a gente faz escolhas, o tempo todo. E que ser livre é isso: é fazer escolhas.

No fim do ano passado, chegou a hora de fazer mais escolhas. Meu mestrado chegou ao fim e, junto com ele, meu contrato com a TV. Houve uma mudança de chefias no Brasil, o cenário já não era mais o de 2015, uma crise exigia cortes e eu tinha duas alternativas: voltar para o Rio, para minha vaga de repórter, conforme o combinado, ou fim da linha na Austrália. Não foi uma decisão fácil, mas foi óbvia. Eu já tinha optado pela reinvenção lá atrás, era só reafirmar a decisão. Então Globo e eu passamos a ser apenas amigos coloridos, com eventuais trabalhos e caminhos livres. Pela primeira vez desde os 18 anos, eu não teria um salário. Ainda antes de me formar, já tinha passado pelo Estadão, pela Veja, tinha carteira assinada pela TV. Deu medo. Mas não seria a primeira vez que eu iria em frente com medo mesmo.

Tive alguns meses para me organizar e me movimentar. Disparei emails, pedi emprego, apliquei para todo tipo de posição como jornalista na Austrália. Eu sabia que não seria fácil trabalhar como repórter em outro idioma, em uma cultura tão diferente da minha. Teve dias em que, de novo, aquele amargo na boca me dizia que não havia saída — não uma digna, pelo menos. Mas de novo eu sabia que eu não falharia para mim mesma.

Acima, o "sorrisão" de Manuela no primeiro dia de aula como professora.

Acima, o “sorrisão” de Manuela no primeiro dia de aula como professora.

Por isso escrevi para o chefe do Departamento de Jornalismo da Bond University pedindo para tomar um café. Já nos conhecíamos, eu havia me apresentado assim que cheguei aqui, mantínhamos contato e eu sempre dizia que gostaria de ter tempo para participar de algum projeto. Chamaremos de sorte? Eles precisavam exatamente de um professor para cadeira de Broadcast Journalism e eu era a candidata ideal.

Meses de avaliação depois, eu tinha um trabalho. Não um trabalho, mas O trabalho. Era tudo o que eu poderia querer: uma posição de prestígio, na minha área, em uma das 20 melhores universidades do mundo, dividindo minha experiência, aprendendo, crescendo, começando de novo, me reinventando.

Semana retrasada, no meu primeiro dia como professora, quando entrava na faculdade, me lembrei do meu primeiro dia como aluna, ainda estudando inglês, dois anos atrás. Naquele dia, com o chão fora dos pés, meu maior compromisso comigo mesma era não deixar que uma historia triste e feia dissesse quem eu era. Tantas escolhas depois, eu tenho um mundo inteiro atravessado, dentro e fora de mim. E tenho certeza de que não estou sozinha. Porque a verdade é que todo mundo tem uma Austrália. Precisando, busque-a.

 

 

Manuela Franceschini, 30 anos, é jornalista e mestre em Relações Internacionais. Começou a carreira no Estadão, passou pela Veja e trabalhou oito anos na Globo, como repórter e correspondente internacional do canal SporTV. É professora de Broadcast Journalism na Bond University, universidade australiana eleita uma das 20 melhores pequenas universidades do mundo, segundo ranking da Times Higher Education (THE).

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