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O sutiã como acessório de libertação: ela deixou a carreira de atriz e criou uma marca que inspira mulheres a aceitar seus corpos

Leonardo Neiva - 5 ago 2025
Denise Dietrich, atriz, escritora e criadora da marca Roupa de Cima.
Leonardo Neiva - 5 ago 2025
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Não foi à toa que, nos anos 1960, as feministas elegeram o sutiã como peça a ser queimada em protesto. Muitas vezes desconfortável e aprisionador, o acessório é um dos objetos que dão forma a um padrão de beleza imposto às mulheres. 

A atriz, escritora e costureira mineira Denise Dietrich resolveu encarar o sutiã com outros olhos. Em vez de jogá-lo na fogueira, que tal reinventar a peça?

Denise está à frente da Roupa de Cima, uma marca de sutiãs feitos de maneira artesanal, sem aro nem bojo, privilegiando o conforto, além do tamanho e da forma natural dos seios. 

Ao se opor ao conceito de “roupa de baixo”, o nome Roupa de Cima evidencia a bandeira de dar visibilidade ao sutiã:

“Antes, a gente precisava realmente esconder, era uma roupa de baixo. E eu falei: vamos deixar escapar essas rendinhas, as alças. Qual o problema de mostrar que eu estou usando sutiã, já que foi uma peça colocada nos nossos guarda-roupas de forma obrigatória?”

Essa visibilidade também se evidencia na transparência da maior parte das peças:

“Eu não coloco forro para a gente poder olhar nossos mamilos, que são ‘proibidos’, são sexualizados, ao contrário de um homem sem camisa”, diz Denise. “Um seio é muito parecido com um peito [masculino], só que o seio é erotizado.”

A MARCA CRESCEU E HOJE INCLUI OUTRAS PEÇAS DO VESTUÁRIO FEMININO

Hoje, a Roupa de Cima vende não só sutiãs, mas também calcinhas, bodies, tops e até calças, roupas e vestidos — sempre com a proposta de trazer conforto e liberdade para o dia a dia da mulher. 

Denise produz ainda coleções especiais como a mais recente, de Carnaval. Além disso, integra o projeto de upcycling da Farm, a Re-Farm, em que a marca carioca disponibiliza retalhos de tecidos que Denise transforma em novas peças de roupa.

Em média, a Roupa de Cima comercializa 300 peças por mês, produzidas sob demanda, de tangas (39 reais) a vestidos (199 reais). O item principal segue sendo o sutiã. O preço vai de 59 a 99 reais, no caso de tops mais elaborados.

DIANTE DA INSTABILIDADE DA CARREIRA DE ATRIZ, ELA DECIDIU COSTURAR PARA COMPLEMENTAR A RENDA

Denise cresceu em Resplendor, cidade mineira com pouco mais de 17 mil habitantes.

Filha de costureira, ela aprendeu o básico do ofício aos 8 anos, quando ganhou de presente do pai uma máquina de costura. Na época, fazia vestidinhos de bonecas que trocava por doces ou vendia para as amigas.

Aos 25, decidida a perseguir o sonho de ser atriz, Denise trocou a pequena Resplendor pelo Rio de Janeiro, onde cursou teatro na Casa das Artes de Laranjeiras. 

Formada, se mudou para São Paulo, em busca de mais oportunidades em uma profissão que, logo descobriu, era bastante instável:

“Eu fazia publicidade, comerciais de televisão, mas era [só] isso… Um mês tinha, no outro não, então era uma loucura financeiramente. E minha mãe é costureira, então nunca tive apoio financeiro da família”

No Natal de 2016, na casa da mãe, Denise comprou de uma tia uma máquina de costura por 100 reais. A ideia era costurar para complementar a renda. O problema é que ela nunca havia estudado moda e, exceto por breves momentos na juventude, não tinha nenhuma experiência com costura.

“Minha mãe fazia calcinha e sutiã na época da minha adolescência, e eu ajudava com molde e umas coisinhas, mas nunca tinha costurado um sutiã sozinha.” 

Mesmo assim, juntou 500 reais do pouco dinheiro que tinha na época e foi ao Bom Retiro, bairro na região central de São Paulo, comprar os materiais para produzir suas primeiras peças.

Procurando moldes na internet, ela conseguiu costurar seu primeiro sutiã; segundo Denise, deu “super certo”. De maneira intuitiva, foi fazendo testes e ajustes para produzir peças de tamanhos diferentes. E começou a vender o que produzia.

“Em agosto de 2017, lancei a Roupa de Cima. E o que era um plano B acabou virando o meu sustento, aquilo que me gera renda.”

A AJUDA DE AMIGAS E A PARTICIPAÇÃO EM FEIRAS IMPULSIONOU AS VENDAS

Aos 19, Denise chegou a montar uma loja para vender o que cultivava no seu pequeno pedaço de terra em Resplendor. Por falta de experiência, o negócio não durou muito. 

Ao empreender a Roupa de Cima, ela contou com o boca-a-boca das amigas, que ajudava a impulsionar as vendas. 

Uma dessas amigas a incentivou a vender suas peças na Avenida Paulista aos domingos – ali na calçada mesmo. Depois, Denise começou a participar da Ofício, feira que integra uma rede de mulheres empreendedoras na capital. 

Foi a deixa para seu primeiro contato mais direto com as clientes:

“Sou atriz, gosto de ouvir e contar histórias. E, conversando com essas mulheres, comecei a ficar muito admirada de como elas deixavam de ir a uma loja, de usar um provador, com ar-condicionado, para comprar na rua. Fui entendendo que era para fortalecer outra mulher”

Com o tempo, Denise começou a pedir que as clientes enviassem fotos usando os sutiãs da marca. 

“Fui vendo que a liberdade não era só em relação às peças: tinha a liberdade de fotografar o próprio corpo. Algumas autorizavam a postar [nas redes da Roupa de Cima], outras não; mas só de mostrar a foto para outra mulher já é uma liberdade.”

O site da marca veio mais tarde, quando Denise já tinha uma clientela formada. Ela diz que o fato de ter tomado coragem para postar fotos caseiras dela própria como modelo de suas peças estimulou outras mulheres a querer compartilhar. 

Embora crítica à publicidade que usa o corpo feminino para vender produtos, Denise acredita que sua marca impacta num sentido diferente, passando uma mensagem de liberdade. “Tanto que sofro pouquíssimos assédios masculinos, quase zero.”

DENISE REATIVOU A CARREIRA DE ATRIZ E ESCREVEU UM MONÓLOGO E UM ROMANCE SOBRE O ASSÉDIO QUE SOFREU NA INFÂNCIA

Enquanto empreendia a Roupa de Cima, Denise reativou em paralelo seu trabalho como atriz e inventou para si uma nova carreira: escritora. 

“Antes, as pessoas falavam que a gente tinha que focar em uma coisa. Então, por muito tempo tentei ‘vingar’ como atriz”, diz Denise. “Mas, quando você vai para esse meio, entende que não depende só de você e do seu trabalho. Agora que tenho uma renda mais estável, decidi voltar a atuar – e escrever.”

Em junho de 2025, ela lançou – na Feira do Livro, em São Paulo – seu primeiro romance, Aquele Trem, publicado pela editora Patuá. A obra narra a história de uma menina que cresce no interior de Minas, vê a mãe ir embora aos 6 anos e perde sua ingenuidade após sofrer um assédio. 

O livro tem inspiração autobiográfica. E a ideia começou a tomar forma dez anos atrás, em 2015, quando a hashtag #PrimeiroAssédio ganhou as redes brasileiras:

“Fui fazer esse trabalho de revisitar, e eu lembrei do terceiro assédio, do segundo, que eu inclusive não achava que era assédio, e aí consegui chegar no assédio que sofri aos seis anos”

Denise nunca tinha escrito sobre esse trauma. Até que, durante a pandemia, pôs essa história no papel, primeiro como um monólogo teatral, que ficou em quinto lugar em um edital Centro Cultural São Paulo voltado à dramaturgia.

“Ali, eu falei: vou fazer ‘na guerrilha’ mesmo, porque esse assunto precisa ser falado”, diz. 

Ela se uniu a uma amiga, com a qual criou a Cia DesaFRONTe de Teatro, que já produziu duas montagens do texto, ambas protagonizadas por Denise. A partir daí, veio o desejo de escrever o romance. 

“Praticamente só as pessoas da área leem dramaturgia, e eu queria abranger um público maior.” 

ELA RECONHECE QUE TEM MEDO DE DELEGAR E PERDER O CONTROLE DO NEGÓCIO

Oito anos atrás, a Roupa de Cima começou como um monólogo: com Denise sozinha no palco, se desdobrando para cuidar de tudo. Na pandemia, o número de pedidos estourou – e essa solidão virou um problema.

“Eu começava a costurar às 8 da manhã e só parava no pôr-do-sol. Às vezes, precisava parar um dia todo para postar nos correios, fazer as etiquetas, atender as clientes” 

Ficou clara a necessidade de contratar uma pessoa. Após uma série de testes, Denise firmou parceria com uma costureira, com quem segue até hoje.

“Ela começou a costurar só para mim e hoje atende mais três marcas, o ateliê dela cresceu também. É uma pessoa muito importante dentro da Roupa de Cima, é quem põe o valor de cada peça.”

Denise continua cuidando de áreas como a administração e contabilidade, mas admite que não leva tanto jeito para a coisa. O problema é que ela tem medo de delegar esses processos e perder o controle do negócio. 

“Até trato isso na análise, porque pode ser um medo de crescer mesmo”

Ela pensa em investir no crescimento da marca para outros marketplaces, mas admite que precisa de mais conhecimentos como empreendedora. Para concretizar essa ideia, acredita que será necessário trazer um olhar de fora.

AO SERVIR DE MODELO PARA SUA MARCA, DENISE FEZ AS PAZES COM O PRÓPRIO CORPO

A Roupa de Cima segue sendo sua principal fonte de renda. Denise decidiu parar de atuar em publicidade. “Falo tantas coisas sobre feminismo e empoderamento nas minhas redes, não vou colocar meu rosto para representar indústrias que eu não defenderia.”

Uma das principais formas de atrair e se conectar com clientes desde o início tem sido o Instagram, onde Denise é a principal modelo da Roupa de Cima Ela conta que isso a ajudou a superar um olhar crítico que sempre lançou ao próprio corpo:

“A exposição do meu corpo foi muito libertadora. Por mais que eu fosse atriz e já tivesse um certo nível de intimidade com a câmera, sempre tive esse receio de sexualizar o meu corpo, porque as marcas que eu cresci vendo traziam sempre mulheres muito sexualizadas… Então, tento fotografar o meu cotidiano, tomando café, lendo livro, mostro a minha intimidade”

Aos 45 anos, Denise hoje tem uma relação mais positiva com sua imagem. “A partir dos 40, o corpo da mulher vai perdendo o seu valor no mundo, num mercado que só quer colocar a juventude como beleza. Mas é a partir desse momento que eu começo a gostar mais do meu corpo.”

Ela compartilha também o feedback de suas seguidoras e clientes. Muitas dizem que o fato de Denise expor o corpo de forma cotidiana nas redes as ajudou a ver seus próprios corpos por uma perspectiva mais generosa. São essas mulheres que a incentivam a persistir, mesmo nos meses em que as vendas não vão tão bem:

“Quando estou mais frágil como empreendedora, recebo a mensagem de uma cliente e é como se desse um gás a mais”, diz Denise. “Foi muito importante essa intimidade que as clientes têm para compartilhar momentos tão incríveis comigo.”

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