Preciso começar dizendo que nunca me faltou nada e que a cada dia reconheço um novo privilégio em minha vida. Tive oportunidades e abracei todas elas, porque sabia que talvez não fosse haver outras.
E tudo porque minha mãe batalhou e me deu o que estava ao alcance dela — basicamente, amor e apoio. Não existe nada mais importante que isso.
Meus pais se separaram quando eu tinha 4 anos. Cresci sem qualquer lembrança de uma figura paterna: éramos apenas eu e minha mãe.
Foi com ela que aprendi a confiar em mim mesmo. Minha mãe me ensinou que eu não era melhor ou pior que ninguém, mas que com dedicação e disciplina eu seria capaz de alcançar os meus sonhos
No fim do Ensino Médio, no entanto, eu ainda não tinha muita noção de que sonhos eram esses.
Minha mãe gostaria que eu cursasse medicina ou direito (o que é natural, um modelo mental de quem não teve muita oportunidade), mas sempre me deu força para tomar minhas próprias decisões.
Então, tentei relações internacionais na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Porém, como o vestibular da Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC) era realizado antes, decidi me inscrever, para testar, na prova para o curso de administração pública — e, preciso confessar, só porque era mais fácil de entrar que o de administração de empresas.
Acabei passando. Não entre os primeiros colocados (foi mais para o fim da lista, na verdade), mas fiquei feliz. O resultado mais esperado, de qualquer forma, era o da UFSC. E não entrei.
Fiquei chateado e, confesso, irritado, culpando a política de cotas pela minha “derrota”. Pois é, eu ainda não fazia ideia da importância para a nossa sociedade das cotas em universidades. Aliás, sendo um homem branco, eu não fazia ideia de muita coisa
No fim, foi por causa das cotas que cheguei aonde estou hoje. Não por ter sido beneficiado por elas, claro, mas pelo fato de ter, dessa forma, seguido no curso de administração pública na UDESC.
No início pensei: “Se não gostar, eu saio.” Me dei essa chance, fui gostando — e logo já estava apaixonado.
Percebi que existia um gestor dentro de mim. O universo acaba nos colocando no lugar certo.
Só que, muitas vezes, os caminhos que precisamos traçar para chegar ao nosso destino podem parecer um pouco sombrios e desanimadores.
Minha mãe foi diagnosticada com um câncer de laringe muito agressivo assim que entrei na universidade. Imagine só: eu ali, começando a construir minha carreira, minha vida adulta, passando por todas aquelas experiências novas e empolgantes, enquanto corria o risco de perder minha mãe – que, para mim, era sinônimo de família e amizade.
Ela sobreviveu e, como sempre, deu a volta por cima. Ainda assim, a vida nunca mais foi a mesma. Tive que reaprender a conviver com uma mãe que perdeu a voz e passou a respirar por um traqueostoma no pescoço
Enquanto isso, eu pensava: se é tudo tão difícil para a gente, que tem acesso a informação, imagina como deve ser para os milhares de pessoas que não têm?
Na época, participamos de um grupo de apoio para pacientes e familiares, em que tivemos a oportunidade de nos sentir parte de algo.
Um dia, em 2013, fiz uma palestra para o grupo dizendo que poderíamos fazer mais, ajudar pessoas em território nacional. Acabei plantando uma semente que germinou e cresce até hoje: em 2015 fundamos a Associação de Câncer de Boca e Garganta – ACBG Brasil (hoje rebatizada como Associação Brasileira de Câncer de Cabeça e Pescoço).
Naquele momento, eu já estava imerso no terceiro setor.
Vou voltar a narrativa uns anos: em 2012, eu tinha iniciado meu estágio no Instituto Comunitário Grande Florianópolis (ICOM), organização que serviu de berço para meus primeiros passos na área social. Foram 18 meses de ICOM, tempo que clareou definitivamente o meu caminho profissional.
Ali tive a certeza de que o que eu queria era trabalhar com algo em que pudesse transformar outras vidas junto da minha. E, rapidamente, minha opinião sobre as cotas – e muitas outras coisas – mudou: aprendi a reconhecer meus privilégios e utilizá-los para fazer algo de bom para o mundo
Dali passei por experiências em diferentes projetos e organizações: Movimento Choice, Projeto Rondon, Guerreiros Sem Armas… Através desta última pude viver 32 dias em uma comunidade da Baixada Santista, furando diversas bolhas sociais (e reconhecendo ainda mais privilégios).
Depois, tranquei a graduação por um semestre e fui morar e trabalhar na Rússia e, em seguida, na Alemanha. Percebi como somos pequenos diante do mundo — e como o mundo também é pequeno diante do universo que é cada ser humano.
Voltei ao Brasil em 2015, com a ACBG saindo do papel. Era mais que um trabalho: era um sonho materializado, especialmente por presenciar a revolução interna da minha mãe, que converteu suas fragilidades em potência e protagonismo. Além de mãe e melhor amiga, ela se tornou minha “sócia” em uma causa de impacto social.
E mal sabia eu que estava prestes a embarcar em outro sonho.
Na última fase da graduação, meu caminho acabou se cruzando com o do Diego Calegari, um empreendedor empenhadíssimo em mudar a educação política no Brasil.
Com uma ótima ideia, muitas referências e um capital inicial em mãos (advindo de um financiamento coletivo no Catarse), ele precisava de alguém para ajudá-lo nesse desafio de fazer da política algo acessível – sempre sem qualquer vínculo político-partidário e ideológico envolvido.
Juntos, eu, Diego, Bruno Blume e Michelle Moura transformamos uma ideia em uma organização sólida, lançando nosso primeiro grande produto em 1º de julho de 2015: um portal de conteúdos para descomplicar a política e ressignificar o conceito de cidadania
Eu não tinha dúvidas de que aquilo ia dar muito certo, mas fiquei surpreso com a velocidade com que tudo aconteceu. Em 2016, conquistamos um financiamento, de uma fundação internacional, que permitiu que trouxéssemos mais quatro colaboradores — e profissionalizássemos o trabalho digitalmente.
O negócio foi ficando cada vez mais sério. Hoje o Politize! é a maior plataforma de educação política do Brasil, oscilando entre 2 milhões e 4 milhões de acessos mensais.
Calegari virou conselheiro; eu sou diretor executivo. Hoje, atuamos em três eixos.
O primeiro deles é o de conteúdo, que vem lá das origens e deu asas à organização.
Em seis anos alcançamos mais de 66 milhões de brasileiros pelo nosso portal. A meta, agora, é, nesse mesmo tempo, chegarmos a todos os 149,7 milhões de eleitores brasileiros. Por que não?
O segundo eixo é o de formação de líderes. O programa Embaixadores Politize! forma lideranças cidadãs capazes de exercer o seu protagonismo comunitário resolvendo problemas públicos por meio do conhecimento político. Já formamos 870 pessoas — e impactamos outras 73 mil, levando o programa a 160 cidades de 22 estados e do Distrito Federal.
O sonho é estar em cada município brasileiro. Certo, posso estar sonhando alto demais, seriam quase 6 mil embaixadas Politize!… Mas estamos fazendo de tudo para fechar nossa primeira década com pelo menos 350, talvez mais de 500.
Por fim, chegamos às escolas, o terceiro eixo. O programa Escola da Cidadania Ativa quer formar uma geração de brasileiros e brasileiras conscientes e comprometidos(as) com a democracia.
Isso acontece através da produção e disponibilização de currículo, material pedagógico, formação de professores e de líderes de classe que têm o potencial de promover a educação cidadã democrática para milhões de estudantes do Ensino Médio em todo o Brasil.
Hoje, temos parcerias fechadas com Secretarias de Educação em diversos estados. (Não preciso dizer que estamos trabalhando para muito em breve chegarmos a todos, preciso?)
A certeza que tenho hoje é que o Politize! já transformou muitas vidas, muitos lares, muitas comunidades.
O que não é diferente com a ACBG Brasil, organização que mudou o cenário do câncer de cabeça e pescoço no Brasil com campanhas de conscientização, formação de grupos de pacientes ao redor do país e mudanças na legislação para garantir direitos.
Nesse sentido, me sinto realizado, embora não tenha dúvidas de que ainda há muito chão pela minha frente.
No meio disso tudo, fiz mestrado em administração e, em 2019, iniciei o doutorado.
Já disse que sou um privilegiado, certo? E trabalhar com propósito é outro baita privilégio que tive. Mas quero dizer que você não precisa ir para o terceiro setor para fazer valer uma causa. O propósito está em cada aspecto da vida – e, principalmente, dentro de você
Não são só as organizações da sociedade civil (OSCs) que têm o poder de mudar o mundo. Em qualquer empresa, em qualquer negócio, seja uma megacorporação ou seu próprio empreendimento – e, claro, em instituições públicas –, você pode buscar a sua importância para o mundo. Quando temos essa clareza, podemos mudar tudo. Sempre de dentro para fora.
E que fique claro: o problema não é o privilégio em si. E sim o que deixamos de fazer pelos outros a partir do momento em que sabemos que – sem desmerecer nossas lutas – sempre tivemos melhores condições para viver a vida.
Gabriel Marmentini, 28, é administrador público, mestre e doutorando em administração, cofundador e diretor do Politize! e da Associação Brasileira de Câncer de Cabeça e Pescoço (ACBG Brasil), organizações da sociedade civil que atuam com educação política e advocacy, respectivamente. Entre as iniciativas do Politize! estão o projeto Escola da Cidadania Ativa, que atua em parceria com secretarias de Educação de diversos estados, e o programa Embaixadores, que promove formações de lideranças cidadãs em municípios de todo o Brasil.
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