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“Quando a IA passa a ser alimentada somente por dados artificiais, ela emburrece. Por isso, sempre exige trabalho humano por trás”

Kaluan Bernardo - 12 maio 2025
Rafael Grohmann
Kaluan Bernardo - 12 maio 2025
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Em março de 2025, o Brasil superou a marca de 64 milhões de CNPJs registrados, segundo o estudo CNPJs do Brasil, elaborado pela Big Data Corp. Ao todo, 78,74% dos CNPJs ativos são dos microempreendedores individuais, os famosos MEIs.

Muitos dos MEIs ganham a vida trabalhando para plataformas como Uber e iFood, mas outros podem ganhar sua renda com pequenos bicos (e recebendo em dólares) em sites como o Amazon Mechanical Turk ou mesmo vendendo fotos e vídeos em plataformas como o OnlyFans.

O brasileiro Rafael Grohmann vem acompanhando esse mundo de perto pelo menos desde 2010, quando fez seu mestrado na Universidade de São Paulo, estudando os discursos de jornalistas freelancers. Hoje, ele é professor na Universidade de Toronto e leciona cursos com foco em estudos críticos sobre plataformas e dados. 

Grohmann também é diretor do Digilabour, plataforma de conteúdos sobre trabalho digital, e pesquisador do Fairwork, projeto coordenado pela Universidade de Oxford para pesquisar condições de trabalho ao redor do mundo.

Para Grohmann, não há muita mágica por trás da inteligência artificial. Ele reforça a denúncia de que muitas destas tecnologias dependem de trabalho humano precarizado e afirma que é preciso pensar em novos modelos de negócios para quebrar esse ciclo.

O Draft conversou com ele. Veja os principais trechos abaixo:


A plataformização do trabalho trouxe precariedade?

Há diferenças entre dizer que um trabalho é precário e que está sendo precarizado. 

É correto, por exemplo, dizer que o trabalho de jornalistas tem sido precarizado nos últimos 20 anos. Porque era uma profissão com certa estabilidade e que, após o início dos anos 2000, passou a desmoronar e ser precarizado em condições de trabalho, remuneração, falta de estabilidade, de saúde etc.

Mas nem sempre um entregador ou uma trabalhadora sexual que trabalha por meio de OnlyFans vai sentir-se precarizada. Porque às vezes a vida deles melhorou. Pesquisas como a da professora Lorena Caminhas, por exemplo, mostram que trabalhadoras sexuais se sentem mais seguras com plataformas

Isso não quer dizer que essas pessoas comprem o discurso de serem os próprios chefes. A maioria das pesquisas evidencia que os trabalhadores não são contra a CLT. São contra um CLT de baixa qualidade.

A questão da temporalidade é importante para entender que precarização é uma situação, não um processo. 

Até onde se estende essa plataformização do trabalho?
A “plataformização do trabalho” é mais ampla que as plataformas digitais de trabalho [como Uber e iFood]. Em um país como o Brasil, as pessoas usam plataformas de mídias sociais para revender bolo de pote, fazer marketing digital, etc. Essas redes sociais também são plataformização do trabalho. 

A partir da pandemia, com o trabalho remoto, a plataformização também virou regra para profissionais como psicólogos e advogados. É por isso que o perfil do trabalhador de plataforma é muito mais amplo. 

Recentemente, com a trend do estilo do Studio Ghibli, houve muitas discussões sobre trabalho, IA e produção de conteúdo. Como você vê esse momento? É uma batalha perdida ou ainda há como proteger os trabalhos?
Nenhuma batalha é perdida. A questão é ver as práticas que a gente tem no jogo. E como nós no Brasil saímos atrás.

Aqui em Toronto há muitas filmagens de séries e filmes. Isso me permitiu acompanhar de perto a greve dos roteiristas e atores de Hollywood em 2023. Foi a maior greve do tipo desde 1988 e pode ser considerada uma greve de sucesso.

Nesta greve, a IA foi vista como um ponto central, mas para os roteiristas não era. Eles estavam preocupados com questões de representatividade e de pagamentos. Mas eles também se tocaram de que, com a IA, os estereótipos de gênero, de raça e de latinidade iam piorar. E identificaram na IA uma boa oportunidade de campanha. Conseguiram atenção a partir disso.

As cadeias de IA vivem um momento de dependência global de infraestruturas do Norte Global. Isso significa que nenhuma regulação local vai dar conta disso. Nem algo como o plano brasileiro de inteligência artificial vai dar conta de interferir em algo que está acontecendo em Hollywood

É aí que precisamos de órgãos transnacionais, como a ONU, que lançou um plano de ação estratégica em relação à IA. Mas a questão do trabalho pouco aparece — tanto no documento da ONU quanto no plano brasileiro. É preciso pensar qual o papel da Organização Internacional do Trabalho nesse sentido também.

Em suas pesquisas, você aborda muito a questão dos data workers, os trabalhadores responsáveis por treinar IAs. Muita gente defende que, com o tempo, a IA não precisaria mais desse tipo de trabalho e realmente se tornaria autônoma. Como você responderia a essa questão?
Quando comecei a pesquisar o tema, muitos pensavam assim. Em 2019, por exemplo, já havia várias reportagens mostrando como a Tesla e a Uber utilizavam data workers na Venezuela para treinar veículos autônomos. 

Hoje entendo que só seria possível não ter mais data workers se os sistemas de IA não fossem atualizados. Porque sempre que for de uma versão para outra, vai precisar de seres humanos para revisar, atualizar e treinar os dados 

É impossível pensar em um modelo capitalista em que você sempre quer mais e mais, mas não tem ninguém contribuindo para isso. 

Quando a IA passa a ser alimentada somente por dados artificiais, ela emburrece. Por isso, ela sempre exige mais trabalho humano por trás da sua suposta “mágica”.

É possível empreender usando IA ou trabalhadores de plataforma de forma mais ética e responsável?
Primeiro, é preciso construir alternativas aos conglomerados tecnológicos comunicacionais, seja Uber, sejam as mídias sociais, seja streaming, seja o que for. Acho que só a regulação não resolve a situação. 

Agora, quais políticas públicas temos para apoiar o ecossistema, seja com o cooperativismo e economia solidária ou com pequenas empresas? 

Um exemplo foi o AppJusto em São Paulo, que se propunha a dar condições de trabalho mais justas para os entregadores [pauta aqui no Draft em 2021, a empresa anunciou o fim da operação em setembro de 2024]. Em um relatório da Fairwork, eles tiraram nota 3 de 10. E ainda assim, essa foi a maior nota que um aplicativo conseguiu. Mas logo eles fecharam as portas porque não conseguiram competir em um mercado completamente monopolizado, como de entregas no Brasil.

Outro exemplo é a Means TV, no setor cultural. Eles são uma cooperativa de streaming em Detroit, são conhecidos como “a Netflix anti-capitalista” e distribuem documentários, filmes, desenhos, games etc. 

Isso, para mim, é algo interessante porque inova em duas dimensões: na organização do trabalho e na narrativa. Você mostra que não precisa trabalhar na mesma lógica de uma grande corporação

Há ainda outras, como a Subvert.fm, que quer ser o sucessor do Bandcamp; a Driverseat, que é uma cooperativa de motoristas que continuam trabalhando para a Uber, mas que querem poder vender seus dados eles mesmos.

E como vêm sendo as políticas públicas nesse sentido?
A inovação não está somente em replicar o modelo de plataforma em uma cooperativa. Não adianta eu fazer uma cooperativa imitando o Uber na minha cidade. É uma maneira burra de se pensar e que não funciona.

É preciso pensar exatamente que tipo de tecnologia, que tipo de negócio se precisa conforme o contexto. 

E o grande público não conhece essas iniciativas. Ou seja, tem um papel também de mostrar para as pessoas que há outras coisas acontecendo. 

Há ainda uma demanda por políticas públicas que incentivam isso enquanto política industrial — e não só para grandes empresas, mas para projetos que levem o Brasil a uma onda mais experimental de economia digital. O Brasil tem um histórico de experimentações na área de economia solidária, na área de software livre

Precisamos voltar a apostar em experimentações ou em laboratórios. O Brasil tem parques universitários fortíssimos comparados a outros países, que, em geral, incubam o mesmo tipo de startup. 

O próprio iFood nasceu de uma incubadora da Unicamp, lá no início mesmo… Há um papel central de experimentar outros formatos, outros iniciativos e também de outros setores. 

Ainda se repete o que está em outros lugares e o que está sendo colocado pelas empresas transnacionais. E é hora de a gente voltar a experimentar localmente com o papel de políticas públicas que incentivem realmente a forma de experimentar. 

Você estuda e fala muito sobre cooperativas. Qual é o papel delas nesse contexto?
Gosto de apostar em combos, ou seja, você tem um combo de políticas regulatórias, um combo de organização de trabalhadores que continuam a pressionar e um combo de alternativas econômicas e tecnológicas, que prefiro chamar no guarda-chuva da economia solidária digital ou economia digital solidária, o que significa ir além da ideia do cooperativismo como uma figura jurídica institucional e valorizar diferentes formas de coletividade. 

Em vários setores no Brasil, você tem coletivos que têm valores próximos a cooperativas, mas não são necessariamente cooperativas, porque a lei do cooperativismo no Brasil é cruel. 

Enquanto na Argentina você tem incentivo para se juntar em cooperativas, no Brasil, as pessoas, por questões de tributação, preferem fazer cada um com seu MEI porque é o mais viável economicamente 

É preciso valorizar essa diversidade institucional que já acontece no Brasil. Ou seja, há movimentos sociais, coletivos, cooperativos, que estão fazendo uma série de coisas. 

E não necessariamente eles vão construir plataformas. Eles vão lidar com o número de tecnologias que podem ser desde tecnologias sociais, ancestrais, até lidar com dados e inteligência artificial. E é isso que estou nomeando como economia solidária digital: pode significar tanto a digitalização dos setores tradicionais da economia solidária, mas lutar principalmente por economias digitais com solidariedade como um valor central. 

Isso, para mim, só vai poder ser uma das alternativas nesse combo se tivermos uma política nacional ligada a essa questão. 

Você está escrevendo um livro sobre o fracasso. Como o fracasso é visto nessa perspectiva?
O Vale do Silício, em 2012, lançou um instituto chamado Failure Institute, em que empreendedores discutem seus fracassos e falhas, a partir de um mantra reapropriado do [dramaturgo e escritor irlandês] Samuel Beckett [1906-1989], de “falhe mais, falhe melhor e falhe mais rápido”. É a ideia de que é a partir dos fracassos anteriores que se chega à verdadeira inovação. 

Essa é uma visão dos Tech Bros, da ideologia californiana, do Vale do Silício e do que vem de neoliberalismo a partir dali. E por que não estou satisfeito com essa visão? Porque esses caras vão sempre ter recursos para seguir adiante. Trabalhadores comuns – sejam cooperativas, sejam em pequenas empresas – não têm recursos para seguir a vida após algo não dar certo 

É preciso repensar o que significa dar certo. Quando você vai julgar escala, o Instagram deu certo porque tem uma escala que todo mundo usa. Mas sucesso ou fracasso não se dão somente por essa métrica.

 

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