“Se hoje temos um terceiro setor pautado pelo sistema da branquitude, é porque o Brasil foi criado em cima de processos escravocratas”

Juliana Afonso - 14 mar 2023
Natalia Boloventa, fundadora da Wilifa.
Juliana Afonso - 14 mar 2023
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“O 3º setor é um dos locais mais atrasados em questão de temáticas e implementação de políticas pró maiorias que são minorizadas.” Assim começa o texto escrito por Natália Bovolenta, 36, no seu perfil do LinkedIn, em janeiro deste ano. 

A publicação foi ilustrada com um card onde se lê “o terceiro setor é racista”. O post alcançou quase duas mil interações e centenas de comentários – alguns bastante combativos.

Especialista em diversidade, equidade e inclusão, Natália faz especialização em cultura, educação e relações étnico-raciais no Centro de Estudos Latino-Americanos sobre Cultura e Comunicação, na Universidade de São Paulo (USP). 

Ela afirma que a repercussão do seu texto é fundamental para que mais pessoas pensem sobre a estrutura dos espaços de trabalho: 

“Se hoje a gente tem um terceiro setor pautado pelo sistema da branquitude é porque nosso país foi criado em cima de processos escravocratas” 

A própria Natália já vivenciou situações de racismo quando trabalhava em organizações do terceiro setor. Em um dos casos, ela sequer pôde falar sobre o ocorrido, já que o episódio aconteceu justamente com a dona da empresa.

Há pouco mais de quatro anos, ela fundou a Wilifa, uma produtora sociocultural que coloca a pauta racial no centro da conversa. Wilifa significa “legado” na língua xhosa (um dos idiomas oficiais da África do Sul) e o objetivo da empresa é trazer letramento racial para a comunidade negra.

A empresa surgiu no bairro Jardim Nélia, extremo Leste de São Paulo, e hoje tem parceiros como a Fundação Setúbal, o Banco BV, o Instituto Legado e o Instituto Jatobá. Entre os projetos estão visitas guiadas ao Museu Afro Brasil, cursos sobre a jornada da identidade racial no país e processos de profissionalização e integração de jovens periféricos no mercado de trabalho.

Natália acredita que contratar mais pessoas negras, estruturar planos de carreira com foco em questões raciais e realizar letramento racial em toda a equipe de forma contínua são algumas das ações necessárias para mudar o cenário atual. 

“Se a comunidade branca não olha para esses fatores e só quer atuar com aquilo que não vai transformar a realidade, é só uma manutenção do sistema” 

Leia a seguir a conversa de Natália Bovolenta com o Draft:

 

Em uma publicação no Linkedin você afirma que o terceiro setor é racista. Por quê? Pode dar exemplos?
Grande parte das pessoas que gerem esses espaços são pessoas brancas e, normalmente, o público atendido é o público em vulnerabilidade social, que é a população negra. 

Se a pauta racial não é colocada como pauta principal, você acaba reproduzindo um sistema assistencialista e não resolve o problema efetivamente.

Um exemplo é a gente ter ONGs estruturando editais para acelerar empresas ou pequenos negócios de mulheres negras onde toda a estrutura é montada por pessoas brancas 

Se não tem nenhuma pessoa negra gerenciando ou verificando se os processos são eficazes, não vai ter um efeito importante para a comunidade negra. Isso é super comum acontecer.

Houve algum episódio recente, algum fato concreto, que motivou a sua reflexão? Você já vivenciou alguma situação de racismo dentro do terceiro setor?
Sim, no ano passado eu vivenciei situações de racismo como funcionária. Quando a gente fala em contratação de pessoas negras, precisamos observar os marcadores sociais. Uma pessoa negra não necessariamente vai ter um computador que atenda as necessidades do que a empresa está pedindo. 

Por lei, a empresa não é obrigada a comprar um computador para o funcionário, mas é obrigada a fornecer. Só que a gente fica sempre nessa linha tênue entre falar ou não falar. Foi especificamente o que aconteceu no meu caso, sendo que já me contrataram sabendo disso.

Nessa mesma empresa, uma mulher negra sofreu por outros marcadores sociais. Além de ser negra de pele escura, era uma pessoa com mais de 50 anos que sofreu etarismo. 

A equipe não estava preparada para entender que ela tinha muito conhecimento, mas que podia ter dificuldade com alguma ferramenta, o que era totalmente compreensível 

Ela também sofreu misoginia por questões salariais: entrou no mesmo cargo que um homem branco e enquanto ele ganhava 5 mil reais, ela ganhava 3 mil reais.

No final do ano, também sofri racismo em uma empresa que estava estruturando um processo para atender uma comunidade negra, mas que só tinha pessoas brancas. Como você é a única pessoa negra envolvida nesse processo, quem vai acreditar que você está sofrendo racismo?

E em algum desses casos você teve espaço para falar sobre o que aconteceu?
No primeiro caso eu conversei, porque eles eram uma empresa um pouco mais estruturada. 

Não sei se eles revisaram os processos dentro da empresa, mas falei sobre a questão do computador e sobre a questão da minha colega de trabalho. 

No segundo, não tinha como falar, porque a própria pessoa que eu trabalhava era a dona da empresa e foi ela que foi racista comigo.

Nos mais de 200 comentários à sua postagem, muitas pessoas relataram sofrer com a falta desse debate em relação ao terceiro setor. Qual a importância de propor uma discussão ampliada sobre esse assunto?
A ampliação desse debate é extremamente necessária. Se hoje a gente tem um terceiro setor pautado pelo sistema da branquitude, é porque nosso país foi criado em cima de processos escravocratas. 

Quando falamos de terceiro setor, a gente também fala, por exemplo, de ONGs e OSCs [Organizações da Sociedade Civil] que são religiosas. 

Muitas vezes essas organizações são cristãs, evangélicas, e ao atuar dentro da comunidade negra elas impõem também uma cultura religiosa 

Por isso o letramento racial das equipes e a consciência racial de para quem está sendo oferecido o serviço é fundamental. Não adianta a gente aprender o básico da comunidade negra, sem entender, por exemplo, que existe um processo cultural. 

As pessoas brancas que trabalham dentro do terceiro setor precisam se conscientizar. Inclusive, se conscientizando elas conseguem construir projetos mais eficazes.

Você afirma também que a maior parte das pessoas atendidas por ONGs são negras e também comentou de pessoas indígenas e outras minorias sociais. Quais as possíveis consequências de realizar uma ação voltada para pessoas negras quando a organização que propõe a ação carece de equidade racial?
Eu sempre falo que nós somos uma maioria que é minorizada. A consequência são projetos que não atendem efetivamente a comunidade e que só retroalimentam processos culturais racistas, ou seja, que não dão mobilidade social efetiva para a comunidade negra e indígena. 

Quando a gente fala do terceiro setor e de projetos para essas populações, não falamos somente de comida e saneamento básico; falamos também de entrar no mercado de trabalho 

Se a comunidade branca não olha para esses fatores e só quer atuar com aquilo que não vai transformar a realidade, é só uma manutenção do sistema. Assim você acaba, inclusive, gerando uma dependência desses projetos, que não é a proposta.

Você comentou sobre renda. Uma pesquisa realizada em 2019 pela Associação Brasileira de ONGs (Abong) sobre a empregabilidade de pessoas negras no setor mostrou que elas ganham em média 27% menos que as brancas. Para além da contratação em si, a equiparação salarial entra no foco das organizações do terceiro setor que trabalham o tema?
Com certeza. Foi o exemplo que eu dei: a minha colega, uma mulher negra de pele escura, recebia menos no mesmo cargo que um homem branco. Isso é racismo. 

As ONGs e OSCs se beneficiam com a falta de uma política interna de equiparação salarial. Tanto que no processo de contratação perguntavam: “quanto você acredita que deve receber?” 

Se colocam nesses termos, a gente tem que falar sobre autoestima, sobre como uma pessoa negra se enxerga, se ela sente que merece receber 5 mil, 6 mil reais. A pessoa fica com vergonha de pedir um salário melhor porque ela não sabe se a ONG vai pagar. 

Existe uma retroalimentação no processo de não querer equiparar os salários, mas é uma obrigatoriedade. 

Você acha que o setor privado tem algo a ensinar ao terceiro setor em termos adoção de práticas antirracistas?
Eu acho que o setor corporativo está um pouco mais encaminhado, mas não acredito que ele esteja tão à frente assim. 

Normalmente, o setor corporativo começa os processos de diversidade, equidade e inclusão através do gênero – mas não interseccionam o gênero com questões sociais 

Então você vai ver uma equiparação dos cargos de poder com as mulheres brancas, mas não vai ver mulheres negras nesses mesmos cargos. 

Dá para olhar para o setor corporativo e aprender um pouco? Dá. Mas sem interseccionar, você mantém as estruturas.

Que ações concretas — a curto, médio e longo prazo — deveriam ser tomadas pelo terceiro setor para que ele seja cada vez mais equânime e efetivo na luta contra a desigualdade racial?
Estruturar a empresa para que ela possa entender a necessidade de contratação de pessoas negras é um primeiro passo. Também é importante fazer letramento racial em toda equipe. 

Eu vejo empresas de terceiro setor que – “ah, ele me falou de letramento racial em 2020, depois nunca mais tocou no assunto…”. Isso não vai adiantar. Precisa ser um trabalho contínuo.

É interessante fazer um censo institucional para entender mais sobre os planos de carreira. Nas ONGs menos estruturadas também é possível começar a organizar esse processo para ter um planejamento de carreira que foque nas questões raciais quando a empresa começar a contratar mais 

Outro ponto é ter salários equiparados, tanto para mulheres quanto para mulheres negras, e fazer processos seletivos focados na comunidade negra, não só para cargos operacionais, mas também para cargos gerenciais.

O mais importante é trazer essa comunidade para dentro e escutar o que ela tem a dizer. Trabalhar com projetos que são para a comunidade negra é fazer junto com ela. Quais são as necessidades? 

Tentar estruturar juntos o que as pessoas dessa comunidade de fato precisam. Senão, fica um lado atendendo e o outro lado não sente essa necessidade atendida.

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