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Anime brasileiro? Estúdio independente viraliza com trailer que adapta HQ de sucesso no estilo de animações japonesas

Leonardo Neiva - 6 out 2025 Cena do trailer de “Rei de Lata”, adaptação do estúdio Kimera para a HQ de Jefferson Ferreira.
Cena do trailer de “Rei de Lata”, adaptação do estúdio Kimera para a HQ de Jefferson Ferreira.
Leonardo Neiva - 6 out 2025
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À primeira vista, o que você vê parece ser o trailer de um anime 100% japonês, com personagens estilosos e de visual colorido se digladiando na tela. Porém, na última cena, a batida do berimbau não deixa dúvida: trata-se de uma produção brasileira. Sim, um inédito anime nacional.

O vídeo em questão é o trailer de Rei de Lata, adaptação da HQ do mineiro Jefferson Ferreira. Esse mangá verde-amarelo começou a ser publicado online, como uma webcomic, a partir de 2018; mais tarde, ganhou seis volumes impressos (pela editora NewPOP).

Rei de Lata, o filme, só deve estrear lá em 2027. Mesmo assim, a prévia, com menos de 2 minutos, viralizou entre a comunidade de fanáticos por animes e jogou luz sobre o estúdio independente por trás da produção — o Kimera, criado há cerca de um ano em torno justamente deste projeto.

Com dois sócios — o ilustrador Eduardo Leviarg, 28, e o quadrinista, cineasta e animador Daniel Bretas, 34 —, o Kimera tem 55 freelancers espalhados pelo país. Dessa estrutura descentralizada veio o nome, que remete à criatura mitológica composta de partes de vários animais.

O KIMERA NASCEU DEPOIS DA DISSOLUÇÃO DE OUTRO ESTÚDIO INDEPENDENTE

Uma pesquisa recente da Netflix indica que mais de 50% dos assinantes da plataforma no mundo assistem a animes. Na plataforma, elas despontam com frequência nos rankings de séries mais vistas.

Por mais que esse sucesso se repita no Brasil, praticamente inexistem produções nacionais semelhantes — animações com um tom mais adulto, histórias relativamente complexas e visuais bem desenvolvidos. Quebrar esse tabu é uma bandeira do Kimera, diz Eduardo:

“Queremos que o povo brasileiro sinta que a gente não precisa olhar para fora do país para se inspirar. O anime é a mídia de animação que mais prospera no decorrer dos anos. Então, por que não pegar a animação japonesa e trazer algo para a gente também, fazer uma coisa mais brasileira?” 

Natural de Curitiba, Eduardo trabalha como ilustrador há 20 anos. Ele conta que o Kimera nasceu depois da dissolução de outro estúdio de animação independente com o qual colaborava, e que chegou ao fim por divergências pessoais.

“Entrei em contato com a galera, que estava bem engajada. Procurei cada uma dessas pessoas e, naquela mesma noite, fiz uma reunião com eles”, afirma. E completa:

“Surgiu a ideia de adaptar uma obra, e a mais sugerida foi a ‘Rei de Lata’. Foi quase unânime, porque a maioria das pessoas conhecia e gostava bastante”

Mesclando ação e fantasia, a HQ Rei de Lata narra as peripécias de crianças com superpoderes que tentam sobreviver num país devastado por uma arma biológica. Além de crítica social, a história envolve lutas que costumam marcar o gênero shonen das publicações japonesas.

E assim, a partir daquela reunião em julho de 2024, o Kimera ia tomando forma já com a proposta de adaptar o mangá de Jefferson Ferreira para o audiovisual.

PARA PÔR O PROJETO DE PÉ, A TURMA PRECISOU TRABALHAR NO TEMPO LIVRE, E SEM REMUNERAÇÃO

Com mais de 160 mil visualizações no YouTube, o trailer de Rei de Lata chamou atenção ao combinar elementos brasileiros (do berimbau e de um batuque de samba a cenas ambientadas em uma favela) a um padrão de qualidade elevado.

Quem vê a prévia talvez nem imagine que aquele vídeo curto levou de seis a sete meses para ficar pronto e envolveu dezenas de pessoas — os 55 colaboradores da Kimera, incluindo o próprio Eduardo.

Eduardo Leviarg, sócio do estúdio Kimera.

Eduardo Leviarg, sócio do estúdio Kimera.

Diretor do trailer, ele acumula a função de coordenar e servir como ponte entre as áreas: o pessoal da concept art, da animação, da dublagem e da criação de conteúdo para as redes. Essa supervisão é importante para manter a equipe alinhada, cada um no seu home office.

E esse nem de longe é o único desafio. Sócio de Eduardo no Kimera, Daniel Bretas trabalha como produtor da adaptação. E revela:

“Estamos fazendo na cara, na coragem, na vontade. Mas, sendo alguém que já sofreu com isso, sei que em algum ponto pode esgotar. Por mais que eu tenha muita vontade, tenho que pagar as contas, manter a vida numa qualidade suficiente para conseguir ir tocando essa paixão”

O Kimera começou com um investimento inicial de praticamente zero. Por enquanto, todos trabalham no tempo livre e sem remuneração. Essa dinâmica, é claro, estica os prazos. Em “circunstâncias normais”, diz Eduardo, o trailer teria levado metade do tempo para ficar pronto.

E como estúdio independente, o Kimera vem produzindo Rei de Lata sem certezas sobre sua distribuição. A ideia é lançar (até 2027) um curta-metragem piloto, apresentando os personagens daquele universo — e, se a coisa emplacar, dar início a uma série animada.

A FALTA DE INVESTIDORES PRIVADOS É UM DOS GRANDES GARGALOS DO SETOR

A ainda curta trajetória do Kimera reflete algumas dificuldades de se trabalhar com animação no Brasil.

Para Daniel, um gargalo do setor no Brasil é a falta de investidores privados, ainda mais voltado a animações adultas. Segundo ele, esse é um trabalho caro, que demanda tempo, esforço e traz pouco retorno financeiro por si só.

(A exceção é quando um produto — vide a Galinha Pintadinha — faz sucesso e gera dinheiro com a venda de mochilas, bonecos, roupas etc.)

Daniel Bretas, sócio do Kimera.

Daniel Bretas, sócio do Kimera.

O produtor cita como exemplo a animação nacional Nimuendajú, em que ele trabalhou. Em junho deste ano, o filme fez sua estreia internacional no festival francês de Annecy, o principal do gênero no mundo.

Embora tenha recebido cerca de 5 milhões de reais do setor audiovisual para ser produzida, Nimuendajú levou 17 anos para ficar pronto — do início da produção até o lançamento em Annecy.

“É muito caro e tem um retorno financeiro questionável, enquanto tem um baita polo industrial no Japão, na China e na Coreia, onde o anime vira boneco, jogo, brinquedo… Aqui ainda existe essa visão turva, em que muita gente acredita que animação é coisa para criança…”

Daniel estima que o curta de Rei de Lata deve consumir entre 300 mil e 500 mil reais. Hoje, eles estão atrás de editais e fontes de financiamento, inclusive a partir de outros projetos autorais. Também cogitam recorrer a financiamento coletivo. E claro, conforme a produção do curta avance, tentar atrair gigantes como Globo, Netflix, Amazon e HBO.

“Ele [o curta] apresenta esses personagens e reforça a qualidade do estúdio. A gente consegue mostrar tanto para os players quanto rodar em festivais, o que também vem com premiações e visibilidade.”

O INTERESSE DE GRANDES ESTÚDIOS É VISTO COM UM MISTO DE ORGULHO E APREENSÃO

Na verdade, o sucesso do trailer, segundo os sócios, já despertou o interesse de alguns “grandes estúdios brasileiros”, que teriam entrado em contato para saber mais sobre o projeto.

“Estão procurando a gente porque o pessoal se organizou e conseguiu fazer com uma qualidade incrível”, dizem os sócios, que enxergam esse movimento com um misto de orgulho e apreensão:

“Querem que a gente trabalhe para eles ou pegar nosso projeto? Qual é o interesse dessas produtoras, uma coprodução? Se for, vamos lá. Mas você já vai nessas conversas pensando que os caras querem uma fatia do bolo…”

Aprender a lidar com cenários assim sem abrir mão do controle do seu negócio será necessário para crescer nesse mercado. Um mercado que por sinal já sente o impacto da chegada da inteligência artificial, afetando a oferta de trabalho criativo para ilustradores e animadores.

Mesmo vendo vantagens na tecnologia, Eduardo critica a falta de regulamentação para a IA, que ainda faz uso de material produzido por artistas sem reconhecer os direitos autorais.

“Muitos editores que trabalham horas para editar um vídeo podem ter aquelas horas – que são as partes mais chatas – resumidas, utilizando uma IA. Mas a parte criativa, que é a parte humana, precisa prevalecer”

Em paralelo a Rei de Lata, o estúdio, ele diz, vem trabalhando em outras narrativas mais curtas, pensando em buscar novos editais, criar um portfólio — e começar a firmar o nome do Kimera no mercado.

“Como a nossa equipe é grande, conseguimos dividi-la para não afetar o projeto principal. Na verdade, é só o começo. Rei de Lata é como se fosse o nosso piloto, para mostrar o que a gente é capaz de produzir com uma equipe 100% engajada.”

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