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“As pessoas acham que a minha empresa ganhou velocidade rapidamente… Não! Se eu fosse branca, a velocidade teria sido maior”

Marina Audi - 5 out 2022
Dilma Souza Campos, empreendedora da Outra Praia (foto: Mariana Neaime).
Marina Audi - 5 out 2022
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Por muitos anos, Dilma Souza Campos, 50, omitiu detalhes de suas experiências multidisciplinares porque acreditava que isso dificultava sua ascensão no mercado corporativo de organização de eventos.

Sua vida profissional começou aos 13 anos, no campo da dança. Depois, Dilma teve um desvio pela periodontia (sim, ela é dentista!) até encontrar o seu propósito empreendedor com a Outra Praia, que se define como uma boutique de criatividade estratégica.

A vivência no campo artístico e, em especial, no programa de TV Castelo Rá-tim-bum como a personagem-passarinha Patativa, era considerada uma mancha no currículo – veja a ironia…

Muitos anos se passaram, Dilma chegou ao cargo de diretora em um grupo de comunicação importante quando, enfim, entendeu que o que a segurava perto do chão e a impedia de realmente voar alto era o racismo estrutural.

Hoje, Dilma é a CEO na empresa que criou, pela qual idealiza e realiza projetos de comunicação corporativa (entenda-se eventos, convenções de vendas etc.) com protocolos específicos criados por ela para inclusão e diversidade, ou seja, com selo ESG. A Outra Praia atende clientes como Paramount, Localiza e Vibe Saúde e faturou 7,5 milhões de reais no ano passado.

Além disso, ela é mentora na Rede Mulher Empreendedora, na FEA-USP e no Grupo de Atendimentos e Negócios da área de publicidade; é facilitadora do programa Google Women Will; e conselheira da AMPRO – Associação de Marketing Promocional. 

No ano passado, aliás, Dilma voltou às telas encarnando esse papel de mentora no reality O Plano É Esse, do Multishow.

Desde sua última conversa com a gente, ela cunhou uma categoria diferente no mercado em que atua: o antievento. Diz que foi mal interpretada à época; agora, está finalizando um livro em que explica o conceito e compartilha o que aprendeu fazendo eventos ESG muito antes que a sigla virasse moda entre as corporações.

Leia a seguir o papo de Dilma Souza Campos com o Draft.

 

Você é empreendedora desde sempre. Vendia alface e torrão de açúcar na porta de sua casa; aos 13 anos começou como assistente nas aulas de baby class; aos 14 anos entrou para uma companhia de dança e passou a ter papéis de protagonista. Aos 15 anos, foi selecionada para um papel no lendário programa Rá-Tim-Bum e depois na sequência Castelo Rá-Tim-Bum…
Aos 15 anos eu fiz duas coisas muito marcantes na minha vida. Primeiro fui participar do musical Emoções baratas [que estreou em 1988 e foi relançado em 2010], do diretor José Possi Neto – que me levou até o Rá-tim-bum, na sequência. 

Eu era ainda pequena, mas já trabalhava com ícones da dança como Ana Maria Mondini, Suzana Yamauchi, Rui Moreira, Wilson Aguiar e é óbvio que isso vai abrindo outras portas…

Nos últimos anos, há um esforço para trabalhar contra o racismo e a favor da equidade de oportunidades. Como era naquela época o ambiente do balé e as possibilidades para bailarinas negras?
Ainda na academia do bairro onde eu comecei a minha formação, eu não me lembro de ver outras garotas negras dançando. Mas quando tecnicamente você é boa…

Pra mim, eu não tinha que ser só boa. Eu tinha que ser muito boa para as pessoas terem menos coisas pra falar de mim. 

Cheguei a prestar audição para várias companhias de balé clássico e não passei em nenhuma. Não entendia o porquê. Eu dizia: “Tecnicamente, aquela menina que estuda na mesma escola que eu e está em um nível abaixo de mim, passou. Como pode?”

Na primeira vez que acontece, você fala pra si mesma que, provavelmente, ela foi muito melhor naquele dia. Aí você vai para uma outra audição, em que uma pessoa dois níveis abaixo de você, passa e você não passa. Então, você conclui que precisa fazer mais aulas… 

Eu não tinha letramento suficiente – e na época, nem os meus pais – pra entender essa questão estrutural do racismo. Mas muitos professores me falavam pra não ficar no balé clássico e ir para o balé moderno. Já tinha um estímulo muito forte… 

Voltando atrás no tempo, com o olhar que eu tenho hoje, consigo perceber que já era uma mensagem: “O balé clássico não vai dar certo pra você”. 

Você já disse antes que foi ao ser transferida para uma escola privada, com bolsa de estudos, que entendeu o que era ser negra, pois você e seus irmãos eram as únicas pessoas pretas do colégio. As experiências ali foram difíceis?
Isso aconteceu quando eu tinha de 8 para 9 anos, a passagem do que hoje seria do terceiro para o quarto ano do Ensino Fundamental I.

Meu irmão ganhou uma bolsa de estudos no colégio Anglo Latino, que à época competia com o Colégio Bandeirantes [notório na cidade de São Paulo pelo  ensino forte e focado no vestibular]. Saímos de uma escola pública na Vila Pompéia, onde a gente morava, para esse colégio muito puxado.

Quando você não era convidada pro aniversário, podia pensar que era por ser nova na escola… Mas aí, no décimo aniversário [sem receber convite], não é mais por isso! 

Por mais que eu visse e sentisse as reações da minha mãe em relação ao racismo não era uma coisa clara, exposta. Era tudo muito velado.

Pode dar um exemplo sobre as reações de sua mãe?
Sim. Quando meus irmãos jogavam bola, normalmente cada torcida sentava de um lado da quadra. 

Eu assisti a essa cena inúmeras vezes: alguém da torcida adversária gritava “Marca o número dez, o neguinho. Pega esse negro fedido…” 

Depois de um tempo, quando minha mãe chegava no limite, ela levantava, ia até a torcida adversária e cutucava a pessoa – já com agressividade – e dizia: “É o seguinte: o número dez tem nome e é Walter. Ele não é neguinho, nem negro fedido, então você vai dizer ‘Marca o número dez, marca o Walter’. E pare de ofender meu filho!”

Existia essa defesa, que não era estruturada também pros meus pais. Então, toda vez que minha mãe levantava era um pânico pra gente, porque ela conseguia ter uma leitura daquela agressão muito melhor do que nós.

Se por um lado na escola o ambiente era mais difícil, no meio artístico, aparentemente, parece que era mais leve. Você concorda que a produção artística é um trabalho colaborativo e mais diverso?
Exatamente! É por isso que digo que me encontrei na dança. Primeiro que eu via outras pessoas negras em companhias de dança – tinha negros no Grupo Corpo, no Balé da Cidade de São Paulo, no Ballet Stagium. Mesmo que fossem dois ou três, essas pessoas iam me inspirando. A questão da sexualidade é muito ampla dentro da dança e das artes… E a colaboração… 

Nunca me esqueço da visita que recebemos de um coreógrafo egípcio chamado Mahmoud Reda – eu devia ter uns 16 anos – na companhia Jazz Brasil. Ele vinha da dança contemporânea, tinha horas que falava: “OK, improvisando sobre esse tema. Agora, todo mundo imita o movimento que a Dilma está fazendo. Agora aquele… E aí junta um com outro…” Havia essa facilidade de estar ali e ser alguém. 

Sempre digo que para os meus irmãos a dificuldade foi muito menor, porque eles jogavam bem. Então, todo mundo queria eles no time. Todo mundo queria que eles fossem no aniversário, porque afinal de contas, o aniversário ia ser num campo de futebol e meu irmão já ia jogar no time do aniversariante. 

Eu acho que é preciso ter uma delicadeza de olhar por eu ser uma mulher. Porque as relações para as mulheres pretas, a evolução e o caminho, são muito solitários.

Esse trabalho colaborativo pode ter influenciado você na gestão e idealização da sua empresa, a Outra Praia?
Não tenho dúvida. Desde que comecei a ter na minha carreira corporativa, equipes para gerir – mesmo sendo diretora de criação de outras empresas, como já fui – , entendo que isso fez total diferença na minha forma de gerir pessoas.

Por quê? Porque acho que a gente desenvolve uma característica que as pessoas hoje chamam de soft skill, que é a capacidade de escuta. Essa capacidade vem muito da colaboração 

Por exemplo, ainda tenho até hoje a lembrança de estar improvisando para o José Possi Neto no [espetáculo] Música Cubana. Não me lembro de nada da coreografia, mas lembro que, de repente, começava uma improvisação entre músicos, bailarinos e tal. E pra improvisar, você tem que escutar e olhar o outro, tem de entender o que ele está fazendo, para perceber se aquilo te provoca alguma coisa… e aquilo te faz criar um movimento.

Essas lembranças são claras. Depois, quando entrei em associações como a AMPRO – Associação de Marketing Promocional, muitas vezes precisei pegar um criativo de uma agência, o planejador de outra, diretor de arte de uma terceira, designer e redator de outras – gente que não se conhecia – para trabalhar juntas. E as pessoas perguntavam pra mim se ia dar certo?

Eu dizia para me mandarem quem estava disponível, porque a gente precisava fazer o trabalho. Eu adoro, até hoje, essa coisa de colocar gente muito diferente pra pensar junto um único objetivo 

Acho que tem a ver com minha capacidade de desenvolvimento técnico que a dança me trouxe, do que a gente chamava de improvisação.

Em comparação à televisão, a dança é um tipo de arte mais restrita. O que significou para você trabalhar em um programa de TV que ganhou tantos prêmios como Rá-Tim-Bum?
Às vezes, as pessoas se espantam com o meu relato… O Rá-tim-bum fez sucesso, mas como eu não fazia um personagem com destaque, não tinha o reconhecimento nas ruas. 

Aí veio o Castelo Rá-tim-bum e muitas crianças eram capazes de olhar pra mim e dizer: “Você é a passarinha!”. Mesmo eu estando fantasiada, começou a haver um reconhecimento 

O Castelo Rá-tim-bum forma uma geração, depois outra… E 25 anos depois, ainda continua a formar gerações!

Quando eu faço a transição para o mundo dos eventos, da comunicação corporativa, passo a omitir essa personagem… por muitos anos. Por quê? Porque, inicialmente, quando eu mostrava meu currículo, as pessoas falavam: “Nossa, onde eu ponho você?” 

Era uma dificuldade achar um lugar porque eu tinha muitas habilidades complementares que faziam parte da minha pessoa –  e as pessoas não conseguiam enxergar isso. 

Foi um problema enorme no meu início de carreira, então eu não queria que ninguém soubesse, porque achava que isso poderia impedir o meu desenvolvimento… Daí, quando descobriam, tinha uma lembrança muito amorosa, afetiva: “Por que você nunca me falou isso? Você é maravilhosa!” Olha só como o mundo mudou…

Aí o tempo foi passando, às vezes eu precisava contar como tinha me tornado diretora artística e então dizia que já tinha feito TV… e virou aquela carta do baralho coringa, que muitas vezes você bate na mesa, em uma jogada tipo “xeque-mate”.

Não me passava pela cabeça que as resistências eram por racismo estrutural. Eu achava que estavam me entrevistando. Pensava: “Com os outros não é bem assim, mas eu sou nova…” Sempre tinha uma desculpa pra não enxergar o que de fato é. 

Isso foi acontecendo até quando eu me vi empreendedora. Aí, começo a entender o quanto é difícil empreender no nosso país. Mas eu achava que era “só” difícil. Não achava que por eu ser mulher e negra fosse mais difícil. E, de fato, é!

Conforme eu me desenvolvo, passam a me pedir para palestrar. Depois de anos, reencontro uma antiga cliente – a Ana Fontes, da Rede Mulher Empreendedora – que trabalhou em Volkswagen. E eu já era superfã dela porque ela era a única mulher entre, sei lá, 16 homens ali, num ambiente totalmente masculino. 

Ela me convidou a ir para a Rede. Eu aceitei porque estava muito solitária… Quando eu disse que a empresa já faturava 3,6 milhões de reais no ano, ela me direcionou para um projeto da EY – o programa de mentoria Winning Women 2016, que virou a minha vida.

Sempre faço questão de falar isso, porque eu sabia fazer e sabia entregar. Mas eu não sabia sobre fluxo de caixa, quantos meses eu precisava ter pra que a minha empresa fosse saudável. 

Eu não sabia sobre a sustentabilidade do negócio. Eu sabia colocar pra fora – atender bem, entendia o que o cliente queria, era criativa –, mas me faltava uma questão técnica… e também o entendimento de que isto é um negócio.

Queria dar um passo atrás… Você se apaixonou pela coordenação de eventos, pelo backstage, porque tinha uma habilidade de unir as pessoas e se organizar. Mas teve algum outro motivo que te afastou da dança?
Sim, tive uma fratura no joelho antes do Castelo Rá-tim-bum. Até hoje, quando faz frio eu tenho dor.

Na época, o ortopedista falou que achava muito difícil eu voltar a dançar. Depois com fisioterapia, alongamento, voltei a dançar, a fazer exercícios… Hoje, faço ioga, mesmo com essa limitação 

Vou no meu limite, que foi o que aprendi durante a vida. Antes, eu achava que [apenas] se eu passasse do meu limite, teria espaço pra mim. Essa é uma carga absurda – emocional e física!

Para que a transição de carreira ocorresse, houve essa limitação física; e, em paralelo você se apaixonou pelo fazer atrás do palco. Quando você começou a vislumbrar a possibilidade de inovar nesse mercado de organização de eventos e comunicação corporativa? Essa área abraçou de imediato a transformação digital e a inovação?
A grande escola que eu tive, por incrível que pareça, foi a dos eventos, porque os eventos tinham o poder aquisitivo – que a cultura não tinha – pra colocar painel de LED que se mexia, fazer projeção mapeada… E, tecnicamente, eu sabia o que era um foco, quando deveria entrar o vídeo, quando entrava a dança. 

Os eventos viraram multimídia e isso era muito legal, porque o que antes para mim era o espetáculo no palco linóleo [revestimento para piso também conhecido como tapete para dança] e um ou outro cenário barato passou a ser um cenário complexo, no qual coisas abriam, escadas desciam, um carro surgia do meio de um de um lugar onde tinha água, gente descendo de rapel na fábrica da Volkswagen, gente dançando ao som da orquestra no prédio da IBM, com o laser…

Essa questão da multimídia já me trouxe para um ambiente de tecnologia no mundo dos eventos. Aí o seu imaginário, a sua criatividade vai para outro lugar – “vamos pôr uma mulher entrando com um vestido que vai aumentando, de repente ele iça a mulher e quando ela está saindo, isso virou uma tela, onde já tem coisa projetada”. Daí tinha votação online… coisas que acendiam nas roupas…

A tecnologia me possibilitou ter ideias e extrapolar. Tínhamos realmente um olhar voltado para Cirque du Soleil, referências do que acontecia lá fora… e a gente implementava aqui, nos nossos eventos. 

Depois de 12 anos trabalhando no backstage de eventos para outras pessoas, você decidiu empreender. Quanto a maternidade influenciou essa virada? E quanto foi por você achar que podia ir mais longe se voasse sozinha?
A maternidade foi o gatilho disso, porque foi no momento em que começamos a discutir mais, a tatear a questão de diversidade e inclusão. 

Eu comecei a fazer evento com 15 anos e abri minha primeira empresa que não deu certo, a dmagrella, com 37. E, com 38, venho para o segundo empreendimento – a Outra Praia. Nessa época, a minha filha Helena tinha 5 anos. Foi quando comecei a perceber que não estava mais sendo ouvida pela equipe. 

A minha experiência artística me colocava numa posição privilegiada frente ao cliente. Como uma esponja, rapidamente eu absorvia a questão estratégica na minha cabeça e já partia para cima – e o cliente acabava me considerando muito mais que a minha própria equipe. 

Com a minha equipe, eu tinha que, todo dia, travar brigas homéricas, porque eu sempre era voto vencido: “você não é formada em publicidade…” Essa falta de escuta e o início da discussão sobre diversidade e inclusão, sobre racismo estrutural, me levaram a decidir não mais ficar ali 

Na época, eu achava que as pessoas não conseguiam ver meu potencial e que se eu fosse empreender, ia mostrar que sou uma boa gestora de departamento, sei mexer com dinheiro e com números.

Eu sempre cumpria a meta, ganhava bônus, férias… e, mesmo assim, eu era uma pessoa completamente castigada pelas microagressões dentro do espaço. 

Entendi que daquele ponto na carreira, eu não ia passar: eram 20 empresas no grupo de comunicação e eu era a única pessoa negra em cargo de diretoria. E decidi empreender 

As pessoas acham que a Outra Praia ganhou velocidade rapidamente. Não! Se eu fosse branca, a velocidade teria sido outra, isso é óbvio pra mim. Então, sempre falo que quando você analisa movimentos empreendedores e empresas, tem que ser com esse olhar total.

No começo da Outra Praia, seu objetivo era só ter colaboradores negros?
Não. Nunca foi, porque eu não sobreviveria só fazendo isso. Eu já sabia que era morte anunciada. 

A partir de quando você passou a incluir o olhar de diversidade, equidade e inclusão nos seus projetos e até chamar isso de butique com foco em ESG?
Desde o início da Outra Praia eu queria ser zero carbono. Eu achava isso muito legal e tinha tido a experiência na Vale – eles zeravam carbono com as florestas que replantavam. Achei tão incrível que decidi trazer pra minha empresa. 

No começo da Outra Praia, eu tive pessoas negras no atendimento, depois na produção, outra que veio mais pro digital…, mas nunca foi intencional. Hoje, sou mais intencional nas minhas vagas afirmativas do que eu era anteriormente, porque entendia que lá atrás não era o momento

Desde o dia zero, a gente começou assim: “Vamos levar um casting diverso para propor nesse evento?” Mesmo recebendo uma negativa do cliente, a gente não deixava de levar.

Daí, a gente levava a ideia do carbono zero, depois começamos a falar em fazer a reciclagem de lixo: “Tem um monte de carroceiro por aqui. Vamos chamar esse pessoal pra passar aqui ao final?” Parece que você vai trabalhando com isso e as coisas vão aparecendo pra você. 

Aí eu propunha no planejamento do cliente que todas as lonas do evento virassem sacola de feira, para serem distribuídas aos funcionários: “Tudo bem a gente fazer isso? São 800 reais que a gente vai pagar para uma ONG de costureiras”. As pessoas no início ficavam meio assim…, mas eu dizia que seria muito, muito legal! 

Acho que a minha empolgação era tanta que a pessoa deixava eu usar os 800 reais, porque não faria muita diferença no bolo todo. Aí quando a gente vinha com as sacolas prontas e explicava que aquilo era lixo que deixou de existir, as pessoas achavam legal.  

E a gente nunca desistiu disso. Mesmo quando nos aproximamos do estilo de gestão das empresas grandes, sempre teve o nosso jeito de sentar à mesa e discutir sobre o que cada um acha do evento.

Por exemplo, se pintava uma dúvida sobre um evento no supermercado para o produto focado na classe C, a gente chamava a Débora, nossa faxineira, para perguntar o que ela achava – era pesquisa com o público-alvo. A gente sempre fez isso sem falar que era isso!

Em 2016, a EY mapeou tudo, virou pra mim e disse que tínhamos que nos reposicionar. “O problema é que você está em concorrências competindo com as grandes – Banco de Eventos, BFerraz [atual B&Partners.co] etc. São sempre cinco agências grandes e você, um peixe pequeno. Comece a declinar, porque você não vai ter caixa pra concorrer com essas pessoas, e tem ainda o jogo político. A gente tem que reposicionar você em um lugar que você possa sair da concorrência”

Aí eu disse ao Fábio Cury, que é hoje o presidente do meu conselho informal, que pensava em transformar a Outra Praia numa boutique criativa. E ele rebateu: “Mas vocês fazem muita estratégia e precisam cobrar por isso!” Ele veio com o posicionamento de boutique de criatividade estratégica na área de comunicação, que pode ser focado em evento ou comunicação interna. 

O tempo veio passando, a gente começou a falar mais de diversidade e inclusão. Quando se fazia um evento com a gente e vinha o convite com alguma palavra “esquisita”, por exemplo, eu falava para tirar. E passamos a fazer consultoria, sem saber

Os clientes começaram a pedir: “Eu quero aquilo lá que você fazia da sacola. Quero aquilo do carbono zero”. 

Uma conta que a gente atende aqui é a Localiza. O cliente sempre pergunta que novidades eu vou levar para ele. E digo: “Se for pra eu fazer, trago um monte. Se for pra outra pessoa…” Por quê? Porque essa pegada ESG eu já faço há dez anos. 

Hoje, essas ações e ideias de sustentabilidade, que podem ser resumidas na sigla ESG, continuam sendo um diferencial? Pode dar exemplos de que impactos são esses nos negócios dos seus clientes?
Sim. Todo evento que a gente faz, em que há bebida alcoólica e se transforma numa balada, nós ativamos um protocolo de risco contra a violência à mulher. 

O que é isso? Eu coloco adesivos no banheiro feminino que dizem: “Você, mulher, que está neste evento, nós estamos com você. Caso você se sinta assediada ou veio com alguém que não está curtindo, vá até o bar principal e peça o drinque La Penha”. Cada hora a gente põe um nome. 

A gente coloca uma placa no banheiro masculino escrito assim: “Se você se identifica como homem, o seu banheiro é este!” E a gente quando produz o banheiro, tira o mictório do banheiro masculino, porque eu posso ter homens trans ali. Hoje, o importante na construção de um banheiro é que a porta vá até o fim 

Então, eu pauto protocolos e processos que são ESG em todo o evento. Se é um show musical, tem tradutor de Libras. Em um evento tem áudio narração: “Você está entrando por um túnel, vai sentir que o chão é assim, assado”

E isso se estende pelo evento para um determinado grupo de pessoas: “Agora vai entrar uma banda, esta banda tem nove músicos. Cada músico é assim: o cara que está na bateria é cabeludo. Nós temos nesse ambiente bebidas, se você quer ir ao bar você pode levantar a mão e pedir ajuda”

Assim, você torna a coisa muito mais inclusiva. Se é uma premiação, colocamos recepcionistas portadores de Síndrome de Down para levar os troféus

Por exemplo, chamamos uma comunidade de 10 mulheres pretas – chamada Armazém Fantasma – e pagamos para elas reciclarem o lixo de um evento, além de levarem as latinhas, porque isso é dinheiro para elas!

A gente começa a fazer o que acredito ser a economia circular, ainda que timidamente.

Em 2020, você escreveu um artigo dizendo que a tendência era produzir “antieventos”. Sua expectativa para aquele ano não se concretizou por conta da pandemia, porém isso ainda é tendência? E antievento tem a ver com simplicidade?
Quando falei isso naquela época, recebi tantas críticas por dizer que queria construir sistemas transitórios. Porque quando eu falo da violência contra a mulher ou de trazer o carroceiro pra reciclar lixo é sobre: economia, política, social, mundo corporativo – é um ecossistema.

Quando a gente pensa em ecossistemas transitórios, trazemos para os projetos o que é a empresa, de forma que ela se espelhe em toda a sua cadeia. Se eu fosse traduzir para o hoje, a gente traz a governança para esse espelhamento em toda a cadeia 

Muitas pessoas dizem que o social e o meio ambiente perderam muito com a sigla ESG. Eu acho que só ganhou, porque antes o G – que tem a maior força e determina missão, valores, propósitos, como ela quer ser vista e espelhada – estava muito longe dos eventos. 

Era como se a gente não tivesse uma continuidade de comunicação da empresa… Por isso é que eu falei de “antievento”, porque fazemos comunicação, uma vez que comunicamos o mesmo DNA da empresa no evento. A empresa é um ecossistema e, hoje, muitas estão se denominando de fato assim.

Eu me espelho nesse ecossistema para construir, fora dele, um ecossistema transitório.

Você já disse antes que ser mentorada foi uma das experiências mais duras que já viveu. Por quê?
Quando eu digo que ser mentorada é muito duro, não é pelas pessoas que estão lá, é pelo processo em si. Toda vez que você passa por uma mentoria, revê coisas e, muitas vezes, você é questionada sobre se algo de fato está certo. 

Ou, então, o mentor consegue te mostrar que o caminho não está 100% certo, e você continua nesse caminho. Isso é mostrar onde você está errando. E a gente não gosta de errar, só queremos acertar – é da alma do ser humano querer acertar o tempo inteiro.

Aí você tem que estar muito aberta para receber esses feedbacks, para entender e assumir o erro. Não é um processo fácil, mas eu adoro ser mentorada. Eu tive chance de corrigir um monte de coisas

Eu tive duas mentoras na EY, processo que foi muito marcante para mim: Chieko Aoki [fundadora e presidente da rede Blue Tree Hotels] e Bel Humberg [cofundadora da OQVestir]. 

A Bel é construtora de sonhos, vendeu a empresa dela e enveredou por vários outros caminhos – é conselheira de vários negócios, é psicóloga. A Chieko tem origem japonesa, é cirúrgica no ponto certo. Isso me deu muito equilíbrio. 

Ela colocou o dedo na ferida, me mostrou que eu estava desanimada, perdida como empreendedora, me fazendo de forte da casca pra fora… e só quando eu decidisse que, de fato, era isso que eu queria, eu voltaria a ter brilho no olho e gana pra virar o jogo, senão não sairia do lugar 

Quando eu voltei pra Chieko, eu disse: “É o seguinte: eu sou Dilma Souza Campos, sou uma mulher preta, empreendedora e estou aqui porque a solução que eu vejo pra meu negócio é me transformar numa boutique de criatividade estratégica. Com isso a gente sai das concorrências, porque não sou agência”.

E ela me perguntou quem era meu maior cliente. Na época, era Ambev. Aí ela disse que teríamos de jogar esse cliente fora, porque se continuasse trabalhando para eles iria falir em oito meses, por conta de uma defasagem de fluxo de caixa. 

Eu fiquei… “Gente, como eu vou chegar na Ambev e dizer que não vou mais fazer um evento se o pagamento continuar em 120 dias? Não pode ser!” 

Elas me disseram que tem horas que, enquanto negócio, você precisa tomar uma decisão. Naquele caso, era: viver ou morrer. Se o seu mentor não fizer isso por você – te colocar pra pensar, te colocar uma pergunta que te faça repensar e enxergar que estava errando mesmo –, não adianta 

É óbvio que no processo, você precisa aceitar que esse é o caminho. Eu sempre tive muita facilidade em absorver o baque. Brinco que aqui é couro duro – bateu, deformou e aos poucos volta.., mas enquanto isso eu já vou pro próximo. 

Pra mim, que entro de cabeça e de coração abertos no processo de mentoria, é uma das coisas mais difíceis que eu vivo. E se eu quero crescer e melhorar, passa um tempo, busco outro mentor, alguém pra complementar, olhar o negócio.

No livro Publicidade Antirracista: reflexões, caminhos e desafios, indicado para o Prêmio Jabuti em 2020, você contribuiu escrevendo um capítulo (“Desafios e caminhos estratégicos para a expressão da igualdade racial na publicidade”) e já disse que essa experiência foi muito significativa para você. Por quê? E como atacar o problema do racismo na publicidade?
Esse livro [que pode ser lido aqui] é um marco pra mim porque ele começou numa palestra que dei na ECA-USP. 

Um professor ligou pra mim e me convidou para dar uma palestra em um dia inteiro de painéis, porque eu era do mercado. Ele disse que havia uma distância entre a academia e o dia a dia e eles queriam uma aproximação. Eu topei.

No dia agendado, eu chego um painel antes da minha palestra. Era uma mesa de discussão entre professores titulares de publicidade e professores doutores de não sei onde… Eu pensei: “Gente do céu, como vou fazer minha palestra? Eu trouxe uma palestra toda com cases atuais, e o povo citando autores…” 

Me senti caindo de paraquedas, desavisada. Mas peguei aquele gancho, subi no palco e disse que tinha achado maravilhoso terem mostrado os autores, mas eu trazia o que é o dia a dia – e como temos evoluído na questão antirracista 

Mostrei vários comerciais com exemplos positivos e depois o contexto do que ainda acontece e a gente não gostaria de ver, quais são os erros. Fui falando e linkando com o que eu tinha ouvido no painel anterior.

Quando terminei, fui pedir desculpas ao professor por não ter trazido bibliografia e a conclusão a que eu cheguei também era pessoal. Ele me deixou muito à vontade e falou que eu tinha que falar segundo a minha perspectiva. Brinquei com ele que talvez, um dia, escrevesse algo sobre o assunto.

No dia seguinte, o professor me ligou e disse que ia chamar todos os palestrantes que tinham estado no evento pra fazer um compilado de um livro dando sequência à tese do professor Francisco Leite e pediu que eu escrevesse um capítulo. 

E foi maravilhoso, um grande desafio. Eu já achava que aquilo tinha sido um marco na minha carreira porque era concretizar todos os anos que eu briguei na AMPRO, na agência de publicidade, fui palestrar gratuitamente pra falar sobre a minha experiência. Tudo aquilo que eu tinha investido parecia estar voltando pra mim 

Agora estou preparando outro livro, que devo lançar em fevereiro, e fala, justamente, do checklist ESG para eventos, para a comunicação de experiências. Nele, conto como construí, esses anos todos, a matriz do que entendemos como ecossistemas transitórios. 

Esses protocolos ESG para eventos beneficiam mais os gestores que participaram do planejamento e podem replicar dentro da empresa? Ou as pessoas que vão frequentar o evento?
Os dois. O ecossistema inteirinho é impactado pelas ações. 

Primeiro, porque a governança é uma só, é a mesma na empresa espelhada no evento. Então, espelhamos o propósito de marca, a construção de marca. 

Segundo: muitas das ações de carbono zero que a empresa faz são acrescentadas no evento. Então, esse ecossistema transitório é apenas a replicação daquilo que a marca é. 

Não tem como você fazer um evento para uma marca que seja super ESG se a marca não tem esse compromisso, certo? Não dá para espelhar o que não se é…
É isso. Você vai espelhar uma parte. Eu dou ali a nota: “Seu evento foi 90% ESG, ou 50% ESG”… E posso ajudar a empresa a melhorar o índice, ou não. 

Se tivesse que deixar uma mensagem, seria: a gente sabe que ESG não é mais uma opção. É a via. Vamos ter que traçar todos os nossos caminhos em cima dessa sigla. E faço um convite para, além disso, aumentarmos a velocidade, porque o mundo precisa disso 

A gente está fazendo, sim. Já melhorou desde minha época de criança. Mas a velocidade ainda é lenta. Precisamos acelerar para construir um mundo melhor.

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