Facundo Guerra: “Antes eu estava numa de ser o maior… Agora, vejo beleza no pequeno. Não quero startup. Escalar pra quê, cara-pálida?”

Marina Audi - 22 set 2022
Facundo Guerra: à frente de projetos como Bar dos Arcos, Cine Joia, Riviera, o extinto Vegas e o novo Love Cabaret (foto: Alex Batista).
Marina Audi - 22 set 2022
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Aos 48 anos, Facundo Guerra já acumulou vivências em 23 negócios na área de entretenimento (ou 25: ele nunca parou para contabilizar). Isso depois de deixar para trás uma carreira corporativa que incluiu passagens por Tetra Pak, American Express e AOL. 

Desses 20 e tantos empreendimentos, ele considera que apenas dois deram errado: um café e um aplicativo. 

Nascido em Córdoba, na Argentina (o pai, brasileiro, tinha fugido para o país vizinho por conta da ditadura), Facundo chegou a São Paulo no começo dos anos 1980. Cresceu no bairro de Santa Cecília e aprendeu a amar a cidade que nem sempre o acolheu tão amorosamente. 

Com a cabeça e o coração ligados nos desejos do público, Facundo criou algumas das casas mais emblemáticas da noite paulistana. Como o extinto Vegas, clube que impulsionou (a partir de 2005) a revitalização do Baixo Augusta, região antes conhecida apenas pelo abandono e como reduto de prostituição. Ou o Cine Joia, na Liberdade, um antigo cinema que Facundo transformou (em 2012) num espaço multiuso com filmes e música ao vivo.

Ele também foi responsável, com o chef Alex Atala, pela reabertura (em 2013) do Riviera Bar e Restaurante, inaugurado em 1949 no térreo do edifício modernista, o Anchieta, ponto de encontro de artistas e intelectuais. O portfólio inclui ainda as baladas Club Yacht (dedicada ao público LGBTQIA+) e Lions Nightclub, e o Bar dos Arcos, aberto em 2018 nas fundações do Theatro Municipal de São Paulo, um de seus mais bem-sucedidos projetos.

Um ano antes, em 2017, no seu livro Empreendedorismo para Subversivos, Facundo contou ter sofrido um burnout – ou “piripaque”, como chamou à época, num tempo em que a síndrome ainda não tinha sido nomeada. Foi a filha, Pina, hoje com 10 anos, que o alertou sobre a situação (por sinal, em sua palestra TEDx, ele faz uma declaração de amor a ela).

Suas investidas empresariais mais recentes parecem diametralmente opostas entre si — não na visão dele, porém. 

Em 2020, Facundo entrou no mercado de hospedagem com o Altar, que oferece casas de luxo em meio à natureza (e foi pauta aqui no Draft). No ano seguinte, arrematou, com ajuda de um equity crowdfunding, a Love Story, boate histórica no centro de São Paulo. 

Frequentada, no passado, inclusive por profissionais do sexo no pós-expediente, a “casa de todas as casas”, como era chamada, está sendo remodelada para abrigar o Love Cabaret, um teatro (ou “parque de diversão para adultos”, como informa o site) com a proposta de desmistificar o sexo a partir de uma perspectiva estética.

“O que aconteceu com o sexo durante a pandemia? Corpos interditos. Quero construir um lugar para usufruir de rituais teatralizados, rituais de desejo”

Politizado e com posições firmes sobre o empreendedorismo e o mercado de startups, Facundo fala sem medo e com convicção. Confira a seguir a conversa dele com o Draft:

 

Você costuma dizer que, em todos os negócios que montou, sempre se perguntava o que era ser paulistano – porque, por ter nascido na Argentina, não te deixavam ser brasileiro. Por outro lado, seu pai saiu do Brasil para escapar da repressão da ditadura militar. Como assim, você não podia ser brasileiro, tendo toda essa história por trás?
Eu cresci na década de 1980, vindo da Argentina. Você não tem ideia do que era ser argentino no Brasil naquela época! Era o auge da revanche futebolística entre Brasil e Argentina e, aí, quando eu ia pra escola, as crianças eram muito cruéis comigo. 

Eu vinha de uma família de classe média baixa e estudava em escola de elite, porque minha mãe conseguia bolsa pra gente. Ela trabalhava como secretária e sei lá mais o quê… O Mackenzie foi a primeira escola onde eu estudei e, na época, minha mãe não tinha dinheiro pra comprar os uniformes, calça ou tênis de marca. 

A gente usava Conga, Kichute, enquanto todo mundo [no colégio] usava marca, porque eles vinham de Higienópolis e a gente era de Santa Cecília, que na época era um bairro bem mais simples. E aí era bullying o dia inteiro… esse termo não existia, não havia esse tipo de consciência 

Então, eu queria, de alguma forma, conquistar uma identidade, queria que me vissem como um brasileiro também, porque, no final das contas, metade da minha família é de brasileiros. 

Só que não dava porque, primeiro, meu nome é muito esquisito, não me permite uma camuflagem, e todo mundo me perguntava de onde eu era. Ao saberem que eu era argentino, logo vinham as piadas. Tem uma categoria de piadas aqui no Brasil que é: “piada de argentinos”. 

Especialmente na década de 1990, quando teve uma invasão de argentinos pelo sul do país – porque o Brasil entrou em crise, enquanto a Argentina estava economicamente mais pujante –, os argentinos gozavam de uma péssima fama entre os homens cisgêneros brasileiros, heterossexuais e brancos. Isso porque as mulheres achavam os argentinos mais cavalheiros, educados, eruditos – e isso também é uma besteira.

Muita gente falava que os argentinos eram pretensiosos, porque diziam que Buenos Aires era uma cidade europeia na América do Sul, que a literatura e o cinema argentinos eram melhores… Maradona era melhor que Pelé. Sabe essa competição idiota? 

Isso pontuou toda a minha infância e adolescência. Sempre fui chamado de “argentino de bosta”, “gringo de merda, volta pra tua terra…” Então, eu não conseguia me identificar como brasileiro – apesar de ser brasileiro 

A Argentina é “o grande país inimigo” do Brasil. Quando você estuda, sabe que para a formação de uma identidade nacional é preciso: uma bandeira, um hino, um território e um inimigo. Vemos isso entre França e Inglaterra, por exemplo, ou entre Portugal e Espanha, e aqui entre Argentina e Brasil.

Só que o argentino não gosta do chileno, por conta de disputa territorial, e olha os brasileiros com admiração. Não tem uma reciprocidade no ódio. Como brasileiro, quando eu vou pra Argentina, sou super bem recebido.

Outro dilema do começo de sua vida é você gostar muito de arquitetura, mas ter ido estudar engenharia de alimentos (no Instituto Mauá de Tecnologia). Por que essa escolha?
Eu não tenho talento nenhum para desenho técnico, aquele desenho à mão e, naquele momento, quando comecei a investigar qual profissão seguir, desenhar à mão livre era muito importante. Tanto é que os cursos preparatórios para vestibulares de arquitetura tinham cadeiras de desenho à mão livre. 

Não havia softwares como a gente tem hoje. Então, como eu não tinha nenhuma aptidão para desenho livre, achava que não seria um bom arquiteto e desisti. Depois de engenharia, fiz extensão em jornalismo, mestrado e doutorado em ciência política.

Em uma publicação recente em suas redes sociais, você contou que deu aula de redação num cursinho pré-vestibular comunitário, para alunos de baixa renda, na PUC. Parece que já tinha o Vegas, você “trampava até seis da manhã” na balada e depois ia dar aula. Como foi isso?
Quando eu estava fazendo mestrado, tinha um cursinho pré-vestibular social – acho que existe até hoje – e, à revelia da PUC, os alunos do mestrado e do doutorado invadiam as salas da faculdade e traziam os alunos vulneráveis, que não tinham como pagar um cursinho pré-vestibular, para dar aulas para eles. 

Era um trabalho voluntário e meio anárquico, porque não era chancelado pela PUC, que não dava nenhuma infraestrutura… A gente invadia as salas de aula e, com o apoio do CACS [Centro Acadêmico de Ciências Sociais] e de um cara do xerox supersimpático ao nosso movimento, imprimia as apostilas 

Mesmo assim era bem organizado. Eu me lembro que o processo seletivo não era fácil, porque o aluno tinha que comprovar que vinha de uma situação vulnerável – o que é meio triste.  E era um curso que acontecia sábado e domingo, o dia inteiro. Eu dei aula de redação por mais de cinco anos. 

Essa vida acadêmica foi paralela às suas experiências no mercado corporativo, trabalhando nas empresas Tetra Pak, Amex e AOL?
Eu comecei a trabalhar na Tetra Pak, mas como tinha terminado uma faculdade de exatas, a engenharia, e vinha de uma família de humanas – além de a maior parte dos meus amigos serem de humanas –, eu me sentia meio sem assunto. Não conseguia conversar. 

Eu me lembro de uma época ir procurar uma psicóloga porque não conseguia falar em público, não conseguia falar com as pessoas, porque me sentia desinteressante, era muito solitário… 

Quando estudava engenharia, eu trabalhava em loja – isso foi até o quinto ano. Eu trabalhava sábado o dia inteiro e folgava três domingos por mês. E nessas folgas eu estudava, porque engenharia na Mauá… você não tem como “enganar”. É uma faculdade bem forte.

Então, eu não tinha vida social. Eu tinha uma vida muito voltada para trabalho e estudo. Aí, quando saí de lá [da faculdade], não conseguia socializar com as pessoas. 

Fui fazer jornalismo… na verdade, [antes] comecei a fazer antropologia na PUC, como aluno ouvinte, para expandir meu vocabulário. Fui sem nenhuma noção, e fui fazendo porque achava chique. Saía do trabalho e ia pra faculdade

Fiz Antropologia 1 até 8, matérias da graduação em ciências sociais. Como eram em dias alternados, em dois anos consegui cumprir todos os créditos. Depois, entrei em jornalismo porque meus amigos na época eram jornalistas ou fotógrafos. 

E fui fazer COGEAE [Coordenadoria Geral de Especialização, Aperfeiçoamento e Extensão, hoje rebatizada de PUC-SP Educação Continuada] lá na PUC, aos sábados e parte dos domingos.

Trabalhava de segunda a sexta, estudava no fim de semana na PUC e, nessa época, também comecei a fazer história da arte no MASP e no MAM – intercalei os dois –, fiz os cursos de cinema do Inácio Araújo…

O que toda essa formação fora da engenharia te possibilitou na área corporativa? Você enxerga alguma correlação entre o olhar mais amplo do mundo pela arte e pelo jornalismo com sua ascensão de carreira?
Acho que isso me ajudou muito mais como empreendedor. A minha formação como empreendedor é muito ampla – eu sou um generalista. Hoje, não sou “nada”, mas tenho noção de onde buscar as coisas. 

Eu posso ouvir e falar de um problema técnico numa obra que estou fazendo – e o cara não vai me pegar no contrapé porque eu sou engenheiro. Posso ler uma planilha de Excel ou falar conceitualmente com arquitetos sobre a distribuição dos volumes no espaço. Posso falar de marketing ou dirigir um vídeo que vamos usar numa rede social. Posso discutir com designer se aquela composição está legal ou não. 

E o que você traz de aprendizado da sua época no mundo corporativo para os seus empreendimentos, hoje?
Muito mais o que não fazer. O mundo corporativo é de muito desperdício de energia. Gasta-se muito tempo em nada, em política… é uma “corte”. E eu não queria uma corte. 

Hoje, a minha estrutura organizacional é muito mais horizontal, anárquica, sem títulos, mais distributiva. Muito mais próxima de uma cooperativa do que de uma corporação. É muito mais achatada 

Não é que não tenha diferentes níveis de poder, mas ela é muito mais achatada do que uma corporação piramidal. 

A cidade de São Paulo parece ter imprimido em você a velocidade e a obsessão pelo trabalho. Até hoje, em 17 anos como empreendedor, você já criou cerca de 20 negócios, muitos relacionados ao entretenimento e à noite paulistana…
Nunca parei pra fazer a conta de quantos negócios eu abri. Eu acho que foram 23… fora os que estão em gestação!

Agora, se contar o Lina Café, um negócio em que entrei como sócio e que não deu certo e o Gig [combinação de geolocalização com a lógica do showbusiness], um aplicativo que entrei como sócio também – até cuidei de uma parte do desenvolvimento, mas depois briguei com o meu outro sócio, o Marcelo Beraldo, e ele ficou com o negócio…

Eu preciso elencar, porque não tenho muita relação com os negócios que “foram” [que já aconteceram], o que é um erro que estou tentando corrigir. Preciso colocar energia nos negócios que virão – mas também parar de crescer tão rápido, parar de fazer tanta coisa para cuidar dos que estão aqui.

Em seu livro Empreendedorismo para Subversivos, você conta que chegou ao limite físico e teve burnout. Como foi isso e que lições tirou dessa fase?
Olha, eu não trabalho tanto porque gosto de trabalhar…. Na verdade, eu não gosto de trabalhar muito, para ser sincero. 

É curioso: você diz que não sente prazer em trabalhar tanto… mas eu contei 11 projetos em que você está envolvido: Cine Joia; Lions Nightclub; Club Yacht; Riviera Bar e Restaurante; a agência de experiências Bioma; o Bar dos Arcos, no Theatro Municipal; Blue Note São Paulo; Ilha, dedicado a eventos; o bar Infini; o Altar; e o projeto Love Cabaret. Como você explica isso?
Necessidade. Eu não tenho investidores externos, então, todo dinheiro que eu acumulei, investi em outros negócios. E fiz investimentos imbecis… investi quase 4 milhões de reais no Mirante Nove de Julho, um café e restaurante social, sem nunca ter feito um plano de negócios e sem entender como esse dinheiro voltaria. 

Eu fui muito descuidado com a parte administrativa, nunca olhei pra isso. Muitas vezes fui roubado, inclusive por sócios.

Como sempre fui descuidado com a parte de grana, nunca acumulei dinheiro, sempre colocava em outros negócios. Aí, na época que estava abrindo o Bar dos Arcos, eu não tinha dinheiro nem pra pagar a escola da minha filha… Falei: “Pô, não quero mais passar por isso! Depois de tantos projetos, eu merecia um pouco de paz financeira” 

Consegui abrir o Bar dos Arcos a duras penas, passam-se 11 meses e vem a pandemia. Aí segurei toda a minha equipe, durante um ano, com 80% do salário. O pouco que eu tinha acumulado após a abertura do Bar dos Arcos, eu zerei. 

Agora, estou me reerguendo de novo, estou fazendo dinheiro. O Arcos dá bastante lucro, mas aí estou investindo no Love Cabaret, pagando as dívidas com impostos que adquiri ao longo da pandemia… 

Então, eu não trabalho porque quero conquistar o mundo. Eu trabalho porque tenho que trabalhar, senão vou atrasar a mensalidade da escola da minha filha de novo. Não estou tentando uma frase de impacto. É verdade: eu tenho que trampar mesmo. E vou te dizer: eu gosto da vida que levo 

Não estou dizendo que sou pobre, nem nada disso! Eu tenho uma vida muito confortável, mas não estou descolado da realidade da maior parte das pessoas como milionário. Eu vou no supermercado, tenho a sensibilidade da classe média de saber que terei de cortar o clube esse mês ou abrir mão de uma viagem porque estou sem grana. 

Isso reflete também no produto que eu vendo, porque o preço pra mim é muito importante. A minha sensibilidade continua sendo de classe média. Eu nunca ganhei dinheiro suficiente pra ser rico. 

Agora, você se prepara de alguma outra maneira pra não passar tanto perrengue?
Em 2022, eu quero ser rico (risadas), quero fazer dinheiro! Essa é a minha meta. Se depois eu vou jogar dinheiro lá do alto da Avenida Paulista, esse vai ser um problema meu. 

Eu não quero ser rico do tipo que anda de jatinho ou helicóptero, mas quero ser rico o suficiente pra comprar um apartamento. Quero a riqueza que te dá certa paz de espírito. 

Eu estou me aproximando dos 50 anos e tenho muito medo de… Essa é uma fase difícil, quando você começa a entrar numa outra etapa da vida, em que tem menos energia vital, tem mais medos, medo de ficar doente… Eu não tenho medo da velhice em si. Tenho medo da velhice associada à pobreza

A minha tia de 80 anos vende paninho de prato na rua, lá no Rio de Janeiro. Meu avô morreu vendendo bala de coco na rua. Meu tio morreu num barraco da [favela da] Rocinha. Eu tenho de pagar o plano de saúde do meu pai, e quase toda a minha família depende de mim, em algum sentido, para pelo menos existir. E eu não quero isso pra mim!

Eu tenho medo da velhice e da pobreza associadas. E o Brasil é cruel demais com os idosos. Não tem estrutura nenhuma. Enfim, eles são descartáveis na nossa sociedade. Então, é esse o meu novo medo. E por isso eu preciso acumular um pouco de dinheiro.

Depois de tantos projetos, de quais você sente mais orgulho? E esse orgulho tem a ver com a memória afetiva das pessoas que frequentam ou frequentaram esses espaços?
Cara, isso é verdadeiro… Se você me perguntar por que eu julgo que os meus espaços são importantes? Eu estudei história da arte, vou tentar criar uma analogia aqui. 

Há quase um lugar comum sobre qual é a aspiração do artista… por que ele cria? Uma resposta é: para expandir seu mundo, colocar o seu mundo interior pra fora para ser conhecido pelas outras pessoas – e isso pode virar, sim, megalomania 

O artista quer tirar uma preocupação, um incômodo, um pedaço de si e colocar pra fora. É quase escatológico, é quase uma compulsão. E de alguma forma é também para transcender a morte, o que é pretensioso: “Eu vou morrer, mas minha obra permanecerá”. 

É como se ele quisesse ser materializado num quadro. Por exemplo, as pessoas vão passar no Louvre e, pelo resto da existência, verão ali o artista imortalizado através de uma obra. É a ideia da arte clássica: o dedo divino do artista toca algo que transcende a sua mortalidade e ganha um status quase divino.

O empreendedor não tem essa pretensão, mas ele quer ser um marcador de memória para os seus consumidores. O empreendedor bem sucedido consegue criar produtos que não são experiências de imortalidade, mas são gatilhos de memória 

Então, quando a pandemia arrefeceu, as pessoas me falaram: “Traz o Vegas de volta”. Eu me dei conta de que as pessoas não têm saudades do Vegas. Elas têm saudades de si mesmas com 20 e poucos anos, da vida louca, [de estarem] descalças na boate com uma “bala” [Ecstasy] na cabeça, “mamando querosene” às quatro horas da manhã, inconsequentes. 

Por quê? Porque, hoje, elas têm quase 40 anos, dois filhos pra criar. O Vegas é só um gatilho para essa pessoa que um dia você foi – e ainda é –, mas que teve que abafar para que a tua outra identidade existisse. 

Mesmo que eu traga o Vegas de volta, você não vai voltar, esse tempo já passou! Se eu trouxesse de volta aquela pessoa que frequentou o Vegas aos 20 anos, ela seria patética, um simulacro anacrônico, meio fora do tempo…

Mas, de alguma forma, aquele lugar que eu montei foi apropriado para aquela pessoa. E virou um gatilho de memória pra ela lembrar de si mesma no passado – o que pode ser bom e ruim ao mesmo tempo.

Imagine que o lugar [o Vegas Club] que um dia esteve na minha cabeça, hoje está na cabeça de milhares de pessoas.. e ele nem existe mais!

E como você pega isso e cria novos projetos?
Eu crio só pra mim. Eu não tenho público alvo. Eu crio pra mim, pros meus, para aquelas pessoas que estão ali perto do projeto… a gente faz pra gente. 

Eu não tenho certeza se [cada projeto] vai dar certo. Mas tenho certeza de que vai dar errado se eu tentar agradar os outros, porque a gente só idealiza os outros, a gente não conhece ninguém [de verdade]. Muitas vezes, não conhecemos nem a pessoa que divide a vida conosco, que está do nosso lado 

A única pessoa que eu conheço, mal e mal, sou eu. Então, faço uma coisa que eu quero pra mim. Eu faço o lugar que eu gostaria de frequentar, um lugar de que eu sinto falta em São Paulo… E, com sorte, vou achar outras pessoas que gostem da mesma coisa que eu gosto. 

Isso é exatamente o oposto do que se prega no ecossistema de startups…
Mas o mercado de startups é uma alucinação, ele não existe! É o reino do unicórnio, é só um clubinho de homens brancos, trocando dinheirinho, num circuito fechado. É de “bro” pra “bro” [de brother para brother]. 

Agora que a gente está começando a falar disso é que esses caras estão tomando um pouco de consciência e falando: “Opa, a festa acabou” 

Eu tenho alergia a esses cripto “bros”, startup “bros”, esses jogadores de vôlei de areia… pelo amor de Deus!

É por isso que você nunca cogitou levantar rodadas de investimento?
Exatamente. Eu não tenho nenhuma paciência com eles. 

De 23 projetos, apenas dois deram errado… isso é um índice de acerto enorme, concorda? Por que você acha que funciona essa estratégia de construir empreendimentos com base em sua sensibilidade?
Eu não sou tão especial, não! Eu não sou um alecrim dourado. Não sou uma pessoa que tem um senso estético mais refinado que a maior parte dos humanos. 

Tem um monte de gente com gosto parecido com o meu, mas que não pensa em entretenimento porque tem outras coisas na vida pra cuidar. E eu só penso nisso!

Tenho certeza de que o que eu prevejo, outras pessoas vão ver também. E eu moro em São Paulo… talvez, se eu morasse numa cidade menor ou numa capital menor, a amostragem de pessoas que compartilham das minhas vontades e necessidades estéticas seria menor. 

Mas, como se diz: “Em São Paulo tem louco pra tudo”. E eu vou encontrar o meu público, especialmente porque hoje tem rede social – os loucos se unem! As pessoas que têm um gosto particular se acham mais facilmente. 

A pandemia, além de afetar o Facundo administrador, mudou de alguma forma o seu modo de pensar negócios, os seus próximos projetos? Quem trabalhava só no mundo físico sofreu um impacto muito maior… Como você enxerga essa mudança, e como está modelando o Love Cabaret?
Tem várias coisas: eu sou muito mais cuidadoso com o dinheiro hoje, muito mais. Participo muito mais da administração dos negócios. Eu tenho dinheiro como uma métrica de sucesso, sim, pra tudo que estou fazendo hoje – coisa que eu não levava em consideração antes. E eu não estou mais expansionista.

O que eu quero dizer com isso? Antes eu estava numas de ser o melhor ou o maior. Sabe a lógica da hipertrofia do anabolizante que banha todo o mercado corporativo? Tudo sobre o que a gente fala tem anabolizante. Tudo tem que ser maior, melhor, mais rápido, blá-blá-blá

Agora, eu estou achando beleza no minoritário, no pequeno, naquilo que serve para algo e é só. Não quero expandir, não quero startup, não quero escalar – tenho horror a essa palavra. Escalável para quê, cara-pálida?

Se você for perguntar por que uma pessoa quer escalar, nove entre dez pessoas não vão saber te responder! Elas vão responder a mesma coisa: “Porque a gente tem que conquistar o mercado; porque a gente tem que acabar com a concorrência”… Mas pra quê?! Você está brincando de War, quer conquistar o mundo? 

Com o que você tem hoje de dinheiro, você se priva de alguma coisa? Qual é o teu sonho? É ter uma Ferrari? Por que você quer escalar, é pra ganhar mais dinheiro? Pra quê?

Temos essa lógica acumulativa, hipertrofiada, de precisar ser o maior, e isso se assemelha muito a uma metástase: “Vamos crescer, dominar esse corpo e tudo bem se matar o paciente no processo”. Ouço essa narrativa o tempo inteiro nos negócios, a lógica do câncer, de ocupar tudo, todas as frestas, todos os espaços 

Por exemplo, é o que a gente vê agora com NFT: “Vamos ocupar o digital, vamos transformar o digital em algo único, pra transformar tudo em mercadoria”. Até um GIF que era replicado ao infinito agora precisa ter um valor de centenas de milhares de criptomoedas… Para! Vai arranjar alguma coisa pra fazer da vida, isso é coisa de gente infeliz. 

Qual é o conceito do Love Cabaret? Ele traz ainda outra novidade em sua jornada de empreendedor – procurar financiamento externo por meio de equity crowdfunding. Como decidiu isso? E o que achou da experiência?
Eu fui atrás de crowdfunding porque eu não tinha dinheiro pra começar a obra e não queria procurar um sócio investidor. E também porque eu estava egresso de uma pandemia.

Foi uma das coisas mais transformadoras que aconteceram na minha vida em termos de negócio. Abriu-se um horizonte gigantesco, porque percebi que eu tenho a minha comunidade. E como comunidade eu consigo fazer qualquer coisa.

Hoje, a gente fala muito da economia do criador e isso pra mim é a materialização desse conceito tão amplo e meio etéreo… E por comunidade, entenda-se a rede impactada pelos conteúdos que eu produzo. Eu uso essa comunidade pra encontrar fornecedor e colaborador – mas nunca tinha encontrado sócio! 

A beleza disso é que você tem um achatamento da pirâmide social. Antes, no topo, estava o dono do negócio, o senhor feudal; na base estavam os clientes, os plebeus. A gente sempre teve essa lógica meio vertical sobre o que é um negócio.

O dono do espaço, o dono do restaurante, o dono da empresa, o CEO que representa o dono e os interesses dos acionistas; do outro lado, o cliente e o colaborador. Nisso tem uma hierarquia. 

Agora, se você achata essa pirâmide e transforma o teu consumidor no teu potencial sócio, no teu potencial colaborador, no teu potencial fornecedor… é o mais próximo do comunismo que você chega dentro do capitalismo.

Desde quando você usa suas redes sociais para formar essa comunidade? Nove meses atrás você iniciou o podcast Divã de CNPJ, que tem um canal no Youtube. Quando começou esse aprendizado?
Isso veio da pandemia, porque antes eu só publicava fotos de São Paulo. Era onde eu compartilhava meu amor pela cidade. Fazia algumas fotos de arquitetura – e era isso. 

Hoje, quero falar com empreendedores, quero ajudá-los e ser ajudado por eles. Nas minhas redes sociais, tenho falado dos meus negócios e sobre empreendedorismo no sentido mais amplo. 

Estar nas redes sociais falando sobre empreendedorismo, colocando a sua experiência à disposição de outras pessoas, foi confortável? Uma vez que no começo da carreira você tinha dificuldade de falar em público…
É uma exposição, mas não faço disso o meu ganha-pão. Eu não ganho nada com o podcast, mas formo comunidade, então, pra mim é importante porque é uma maneira de aprender com outros empreendedores, de ter conversas fora desse campo mais “meritocrático” que contamina todo o discurso do empreendedorismo hoje.

Quando você fala de empreendedorismo, uma grande parte das pessoas boceja, porque é o mesmo discursinho de homem branco cisgênero, heterossexual de 40 anos – é a startup, a meritocracia do “você pode”. 

A esquerda só fala de empreendedorismo social, como se o lucro fosse tóxico, e não tem quem fale do empreendedorismo real – a menina preta, mãe solo, de comunidade, que faz bolos… Esse é o empreendedorismo de verdade no Brasil. O que a gente chama de “empreendedorismo” aqui no país é a precarização da relação trabalhista 

Outro dia, li uma matéria que me deixou chocado: 50% dos CNPJs no Brasil têm um só CPF. E 90% dessa galera fatura um salário mínimo por mês. Isso não é empreendedorismo. Isso é precarização da força de trabalho. 

O menino que está lá no farol não é empreendedor de si mesmo. O cara que está no Uber com uma mochila nas costas não é empreendedor, é sobrevivente. Então, esse discurso do empreendedorismo serve pra fazer o quê? Para mascarar a desigualdade social, pra dizer que o cara está desempregado, mas agora ele tem um “projeto”… 

Repare que agora ninguém mais está desempregado. Todo mundo tem um projeto. Nunca vai sair do papel, mas todo mundo tem projeto

Antigamente, você falava de desemprego e a pessoa se sentia meio tóxica. Eu me lembro que teve uma época quando fiquei desempregado e tinha vergonha de ser desempregado. Aquilo me colocava num campo do morto vivo, especialmente em uma cidade como São Paulo. 

Hoje, todo mundo é freelancer, todo mundo tem projeto, todo mundo está fazendo suas coisas… mesmo quando você não está mais trabalhando. 

Como você equilibra pensar projetos tão diferentes entre si, como o Love Cabaret, que reúne muita gente dentro do mesmo espaço, e o Altar, uma empresa que vende o isolamento em meio à natureza? E o que cada um desses projetos significa para você?
Eles parecem ser assimétricos, né? Mas são muito, muito próximos. As ferramentas que eu aprendi com entretenimento, posso aplicar para qualquer coisa.

Hoje, o entretenimento é o vapor do espírito do tempo. Não existe uma indústria do entretenimento. Existe um conjunto de ferramentas que você pode aplicar para educar, divertir, ensinar… pra fazer qualquer coisa 

É engraçado como a gente teve, ao longo dos anos, o deslocamento da cultura para o entretenimento. E, por outro lado, eu lido com a resolução de desejos. Eu nunca vendo produto. Eu tento entender o que você precisa, o que está buscando? 

Ninguém sonha em ter um martelo. Ele é só um veículo pra você pregar uma foto de sua filha na parede. Você resolve suas questões psicológicas, psíquicas, da tua cultura e memória afetiva a partir do momento que olha para foto na parede. 

Ninguém está comprando “drinque”. Ninguém está comprando “cabaré”. As pessoas estão querendo resolver alguma coisa dentro de si. Quando vão para o cabaré, elas estão querendo se sentir vivas, descobrir campos que nunca imaginaram que existiam

Elas estão querendo se sentir subversivas ao entrar numa noite de BDSM – o que eu, particularmente, acho bobo. Mas é esse limite da subversão a que elas se permitem.

Já no Altar, as pessoas estão com um cérebro frito por [uso excessivo] de telas. Não aguentam mais ser observadas o tempo inteiro, querem um pouco de privacidade, querem existir sem outras pessoas do lado. Elas precisam de um tempo consigo mesmas, para pensar na vida.

A vida em uma cidade tem tantos estímulos que você não consegue pensar e refletir sobre uma decisão importante que precisa tomar…

Estou sempre tentando entender: que desejo você tem? A partir do momento em que encontro um desejo que pertence a muitos, começo a usar as ferramentas do entretenimento – narrativa, conexões pouco prováveis, estética e arte – para construir um produto que tenha valor 

Eu não vendo produto muito caro. Eles são caros – o que é uma questão de percepção –, mas eu entrego um bom custo-benefício. 

Daqui pra frente, você estará mais ligado a empreendimentos no estilo do Love Cabaret, ou do Altar?
Estou pensando em parar com o entretenimento. Já fiz tudo o que eu podia fazer. O Love Cabaret é um teatro, coisa que eu nunca tinha feito, então ainda me deixa excitado. 

Talvez eu tenha mais um teatro – quero fazer pelo menos duas experiências: o Love Cabaret e mais um que estou preparando… e aí, acabou 

Mas ainda não dá pra falar sobre esse [projeto], porque é para crianças… para crianças de espírito. Estou fazendo junto com a minha filha, que tem contribuído. Eu queria fazer alguma coisa que fosse para ela. 

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