Para fundadores de startups e interessados em inovação em geral, uma visita ao Google e à Meta, na Califórnia, é um sonho de consumo. Um sonho infelizmente disponível para poucos, ainda mais considerando os custos da viagem.
Nascida na periferia de Ribeirão Preto (SP), Danielle Marques, 31, superou essa e outras barreiras no caminho de tantas mulheres negras. Formou-se em administração e fez mestrado em direito pela Universidade de Brasília. E, em 2022, graças a uma campanha de crowdfunding pelo Vakinha, ela conseguiu viabilizar sua imersão no Vale do Silício.
No grupo de 70 brasileiros naquela viagem, organizada pela Startse, Danielle era a única pessoa negra. Ao voltar da imersão, começou a se questionar: e se eu pudesse proporcionar essa mesma experiência a mais empreendedores pretos e periféricos?
Motivada por essa indagação e por uma crescente percepção sobre a falta de líderes negros em startups no Brasil, Danielle criou o Do Silêncio ao Silício. O projeto leva afroempreendedores ao polo tecnológico californiano.
Até aqui, foram 20 participantes, divididos em duas turmas de dez, em abril do ano passado e de novo agora em 2025. “O foco maior [da imersão] deste ano foi IA”, diz Danielle. Da passagem aérea à hospedagem, todo o valor é custeado pelo projeto, incluindo gastos com a emissão de visto e despesas durante a viagem. E a conexão continua no retorno ao Brasil:
“Após o retorno, seguimos acompanhando eles por pelo menos um ano e meio, ou mais, não tem um tempo definido”, diz Danielle. “Fazemos sempre alguns diagnósticos para entender como anda cada empreendedor e seus negócios.”
Leia a seguir a entrevista dela para o Draft:
Pode contar como foi a sua formação e a trajetória profissional que a levou a desenvolver o projeto Do Silêncio ao Silício?
Tive uma infância e adolescência na periferia, então a minha experiência é de uma pessoa preta periférica. Comecei a trabalhar na adolescência e tive acesso ao mercado de trabalho por um programa da prefeitura para jovens aprendizes.
Passei por diversas empresas de atendimento e call center, até que fui aprovada no ProUni. Entrei para a Universidade de Ribeirão Preto e me formei em administração de empresas.
Minha história com o empreendedorismo começa na faculdade. Eu precisava de um tema para o meu TCC, mas não me identificava com o que aprendia no curso, era muito distante da minha realidade
Lá aprendi que, para criar um negócio, basta arrumar alguém para investir, normalmente a família. Mas minha família não tinha 50 mil reais.
Um dia, um amigo comentou: por que você não pesquisa afroempreendedorismo? Foi o primeiro passo. Era completamente diferente do que eu aprendia na universidade, pessoas que empreendiam por necessidade, não por oportunidade
Comecei a encontrar nesse espaço as pessoas da minha família, mulheres que sempre foram muito empreendedoras, mas que a gente nunca denominou assim
A partir disso, eu e um grupo de amigos começamos a fomentar eventos em Ribeirão, como a Afronte Revolução Preta. Eram festas com feiras onde os empreendedores podiam expor seus negócios.
Como foi que você acabou viajando para o Vale do Silício? Já era uma vontade antiga?
As pessoas começaram a me procurar para ajudá-las, mas percebi que o meu conhecimento era muito raso perto da profundidade das demandas. Então, busquei me especializar na área.
Fui a primeira aluna de fora da USP a fazer parte do Núcleo de Empreendedorismo da universidade, que me apresentou um leque gigantesco de oportunidades.
O Núcleo tinha uma pré-aceleradora de startups, e a gente fazia imersões, viagens para lugares fora de Ribeirão. Nessa época, vim a São Paulo conhecer empresas de tecnologia, e comecei a me questionar onde estavam os empreendedores negros da área
Em 2020, meu projeto de mestrado, uma pesquisa sobre a falta de fundos de investimento para empreendedores negros em tecnologia, foi aprovado na UnB (Universidade de Brasília).
Coincidentemente, comecei a trabalhar numa grande startup em São Paulo, o QuintoAndar, até que veio a pandemia. Sempre gostei muito de estudar, o conhecimento é um pilar importante no meu desenvolvimento profissional. E a pandemia foi um período de rever para onde eu estava caminhando.
Na época, eu trabalhava na área operacional do QuintoAndar, mas queria ir para uma mais estratégica. Até que participei de um evento online sobre inovação, empreendedorismo e tecnologia, em que boa parte dos palestrantes eram homens e brancos. Ao final, falaram da imersão no Vale do Silício
Como o valor era muito inacessível, fiz uma vaquinha, que acabou viralizando nas redes. E, em 2022, fui para o Vale do Silício.
Que impacto essa experiência teve para a sua carreira e no plano pessoal? Foi nesse retorno que surgiu a ideia de proporcionar a experiência a outros empreendedores negros?
Dos 70 empreendedores brasileiros, eu era a única negra. Isso com mais de 53% dos empreendedores sendo pretos ou pardos no Brasil, segundo o Sebrae. Foi um divisor de águas. Depois da viagem, passei a valer “alguns centavos” a mais no mercado.
Saí da periferia para cair num universo completamente diferente do meu. Quando terminou a imersão, voltei para a minha realidade e percebi que as pessoas continuavam com as mesmas dificuldades para empreender. Elas não têm acesso ao básico.
Comecei a pensar no que fazer com todo esse conhecimento que adquiri não só durante a viagem, mas em toda a trajetória. Eu já tinha feito um mapeamento de empreendedores [negros] de tecnologia, então sabia que eles existiam. Aí, falei: e se eu levasse mais pessoas para o Vale do Silício, para elas entenderem o que está acontecendo lá?
No final de 2022, comecei a construir o projeto. O nome Do Silêncio ao Silício veeio de uma fala da Monique Evelle [fundadora do Inventivos, que foi pauta aqui no Draft, e jurada do Shark Tank Brasil], que diz que os empreendedores negros existem, mas ficam no silêncio. Eles geram negócios e dinheiro, mas são muitas vezes silenciados. A ideia era projetar esses empreendedores em outros espaços.
Danielle (ao centro) com turma de afroempreendedores em visita ao Google.
Abrimos o processo seletivo em janeiro de 2023 e tivemos mais de 300 inscritos. Saiu em muitas mídias, e a gente começou a fazer captação para arcar com os custos.
Fizemos uma parceria com a Voxy, e os empreendedores tiveram acesso a cursos de inglês, programas de aceleração e mentoria para chegar no Vale mais confiantes. A maioria não tinha visto americano, então fizemos uma parceria com o consulado. Custeamos visto, passagem, hospedagem e toda a imersão no Vale do Silício.
Como foram as experiências das duas turmas do projeto até o momento?
A gente fez uma parceria com a Brazil at Silicon Valley, uma conferência grande no Vale do Silício, onde esses empreendedores, além das palestras, tiveram oportunidades de networking.
Visitamos o Google, a Meta, a Plug and Play, a Founder Institute e outras empresas. Com a primeira turma, foram 12 dias de viagem, uma experiência muito legal.
O objetivo não é copiar o que está sendo feito nos EUA, porque a realidade é totalmente diferente. É um lugar para se inspirar, entender o momento que esses países vivem – e como transformar o Brasil em um polo de inovação e tecnologia
Precisamos arrumar as ferramentas para que os negócios cresçam cada vez mais. E, voltando, eles têm como próximo passo oferecer mentorias para pessoas da periferia que querem empreender em tecnologia.
Fizemos este ano uma nova turma, de dez pessoas, que durou oito dias. Eles conheceram a Circuit Launch, um coworking de robótica. O foco maior deste ano foi IA, está todo mundo sendo bombardeado com informações sobre isso.
E visitamos empresas, a Universidade de Stanford, falamos com empreendedores negros. Tudo para enxergarem novos caminhos e possibilidades.
Já deu para quantificar o impacto da visita para os empreendedores?
A gente fez três diagnósticos, conversando com esses empreendedores para entender o que mudou. Já vimos mudanças, por exemplo, em faturamento, e também pessoas que pivotaram o negócio: tivemos uma startup que deu um passo atrás para implementar IA, mudando totalmente o caminho.
As conexões foram muito importantes. Alguns fizeram negócios e parcerias lá na conferência. Teve empreendedor que conseguiu mentorias com outros participantes.
Como você mesma falou, a demanda é grande e as vagas são restritas. Como é o processo de seleção? Que critérios vocês costumam aplicar?
Precisam ser empreendedores negros criando startups. E tem que ter essa disponibilidade de mentorar outros empreendedores.
Na primeira fase, eles preenchem um formulário com várias informações. A segunda é uma entrevista com o nosso time, para a gente conhecer o negócio e a pessoa. E a terceira consiste em uma dinâmica em grupo. Porque é uma viagem coletiva, então a pessoa precisa mostrar que consegue passar esse período com outras pessoas que nunca viu na vida.
Quais os maiores aprendizados que você consegue apontar nesse período à frente do projeto?
São muitos, é uma jornada empreendedora. Primeiro, a consistência, a organização para seguir o processo de criar uma startup, se formalizar. São muitas demandas, é difícil, mas é necessário persistir.
Aprendo muito observando, estudando, pedindo conselhos. Sempre falo da importância de ter pessoas que já passaram por isso e consigam te dar instrução. Porque tem dias em que você vai falar: não sei para onde ir
Alguém que do nada surge falando em levar empreendedores para fora do país acaba sendo inovador, e assustando as pessoas também. Então, muitas empresas e marcas ficam com receio de entrar no começo.
Mas você tem que persistir até que o seu objetivo se conecte com o das organizações. Alinhar o que eu estava querendo proporcionar com pessoas, empresas e marcas foi muito importante.
Hoje, quais são as maiores dificuldades para empreendedores negros e periféricos no Brasil?
Uma das mais fortes é captar recursos. Empreendedores negros têm duas vezes mais chances de ter crédito negado. Então, acesso a capital segue sendo o maior desafio.
Além disso, empreender por si só já é extremamente difícil no país. A pessoa precisa entender que vai ter que abrir mão de muita coisa.
É difícil, mas existem caminhos. É complicado se manter persistente, sabendo que precisa gerar renda, que você tem família. Muitas pessoas acabam fazendo outras jornadas de trabalho para manter o sonho de empreender. Às vezes, os desafios são maiores do que as conquistas
Principalmente no começo, você tem que mostrar que o que faz é relevante. A gente escuta histórias de empreendedores que receberam recursos da família ou que venderam um carro, um apartamento para investir no negócio. Mas muitas pessoas começam sem recurso nenhum, só com a ideia.
A falta de acesso e de um letramento em tecnologia ainda é uma grande barreira para esses empreendedores?
Tem um esforço de pessoas, organizações e empresas para levar o ensino dessas novas tecnologias. O momento que a gente está vivendo cria um abismo.
Tem uma frase que eu gosto muito, que diz que “o Brasil se digitalizou antes de se alfabetizar”. O que eu vejo é exatamente isso – e quanto menos a gente foca em educação, mais aumenta essa lacuna
Boa parte das pessoas hoje tem acesso a um celular, mas não sabe como fazer uso dele para criar negócios, estudar…
Uma das palestras no Vale foi de uma executiva da Microsoft, que falou que a gente vai precisar treinar e retreinar… A primeira versão do ChatGPT é completamente diferente da última. Essa tecnologia chegou e já está modificando a nossa vida.
O que eu sinto falta é da construção de um plano, com objetivos específicos e desenvolvimento. Os agentes desse processo são as empresas, o governo? A gente vai ensinar essa tecnologia nas escolas? Sinto que está todo mundo perdido…
E a gente precisa de um plano, porque[essa questão] já afeta a vida de muitas pessoas. O que venho acompanhando nas palestras é isso: tem um potencial gigante, só que, se a gente não alfabetizar as pessoas e não incluir na rotina delas, vai ter um grande problema.
Qual a importância e o impacto de fomentar um ecossistema de startups mais diverso no país?
Temos a possibilidade de resolver problemas reais que afetam milhares de pessoas. Um dos nossos fellows, a plataforma AfroSaúde, conecta profissionais da saúde a pessoas negras. O acesso à saúde mental, no Brasil, infelizmente ainda é um privilégio.
Pessoas negras, que são mais de 56% da população, querem se conectar com profissionais [de saúde] e não sabem onde encontrar. Não temos grandes empresas olhando para esse mercado específico. Tanto que, num convênio médico, é difícil achar um profissional negro
Pessoas diversas vão pensar a partir do problema e resolver uma demanda que grandes empresas olham como nicho – mas que é um mercado gigante.
Hoje, temos a questão da pobreza menstrual. A EcoCiclo criou um absorvente biodegradável, com impacto menor no meio ambiente, e uma plataforma de e-commerce onde mulheres empreendedoras podem colocar seus negócios.
(Cofundadora da EcoCiclo, Adriele Menezes ficou entre os dez empreendedores selecionados e integrou a primeira turma do projeto que viajou ao Vale do Silício.)
Se você não vive essa realidade, nunca vai pensar por essa perspectiva. Então, trazer mais diversidade é resolver problemas reais de pessoas reais.
E quais os próximos passos do Do Silêncio ao Silício? Vocês pensam em explorar outros destinos?
A gente quer olhar para outros lugares que são polos de inovação e ampliar essas experiências. Tem muitos países fazendo coisas incríveis, e é muito importante conectar os nossos empreendedores com esses ecossistemas.
E [precisamos] olhar também para o processo de capacitação desses empreendedores com as novas tecnologias. Estamos avaliando uma plataforma para ajudar esses empreendedores. Seguimos fazendo captação para que isso aconteça.
A morte do pai por câncer de pele foi o ponto de inflexão na vida de Willian Boelcke. Ele transformou a saudade em motivação e se juntou a Lucas de Souza para desenvolver uma inteligência artificial que detecta lesões potencialmente malignas.
Desconstruir mitos e fórmulas prontas, falando a língua de quem vive na periferia: a Escola de desNegócio aposta nessa pegada para alavancar pequenos empreendedores de São Miguel Paulista, na zona leste de São Paulo.
A Diáspora.Black nasceu com foco no turismo como ferramenta antirracista. A empresa sobreviveu à pandemia e às dívidas, diversificou o portfólio com treinamentos corporativos e fatura milhões sem perder de vista sua missão.