Verbete Draft: o que é DeSci

Dani Rosolen - 12 jul 2023
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Dani Rosolen - 12 jul 2023
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Continuamos a série que explica as principais palavras do vocabulário dos empreendedores da nova economia. São termos e expressões que você precisa saber: seja para conhecer as novas ferramentas que vão impulsionar seus negócios ou para te ajudar a falar a mesma língua de mentores e investidores. O verbete deste mês é…

DesCi (Decentralized Science)

O que é e para que serve: Decentralized Science (DeSci) ou Ciência Descentralizada, em português, é um conceito que busca aplicar os princípios da descentralização e da Web3 na produção científica para resolver limitações e desafios do sistema atual, entre eles, a falta de financiamento e os obstáculos para a obtenção de propriedade de direitos autorais.

O objetivo com isso é claro: tornar o conhecimento científico acessível para que suas aplicações práticas beneficiem a humanidade. A DeSci seria um próximo passo em relação à Open Science (Ciência Aberta), que já busca promover o acesso aberto e transparente ao conhecimento científico, mas agora se valendo da estrutura da tecnologia blockchain para isso.

De acordo com Catarina Papa, cofundadora da Layer2Business (consultoria cujo foco é auxiliar empresas a desenvolverem projetos e produtos baseados em tecnologias emergentes como blockchain, IA e Web3) e sócia da e na Labirinto Art (plataforma que promove a produção artística e de pensamento crítico na interseção da arte contemporânea usando DeFi):

“Precisamos analisar dois grandes pilares no contexto da DeSci. O primeiro é o da Ciência propriamente dita que, desenvolvida em instituições tradicionais como as universidades, muitas vezes não consegue avançar de forma descentralizada e global por conta do acesso restrito a dados. O outro pilar é o econômico, pois no modelo atual a compensação financeira não chega a todos os envolvidos em uma pesquisa”

Ainda segundo a especialista, muitas pessoas confundem o termo “descentralizado” com algo desorganizado, que não vai ter autoria ou gerar ganho, mas é exatamente o contrário.

“Para mim, o que todo esse movimento significa é uma irrigação econômica mais fluida, que permeia todo o sistema social.” (Saiba mais no item “Vantagens”).

Origem: Não há um inventor para o conceito, que foi desenvolvido e vem sendo aprimorado de forma coletiva. O termo, propriamente dito, começou a ser utilizado nos últimos três anos e a viabilidade de criar plataformas DeSci surgiu com a popularização da Web3, mas as primeiras plataformas de Ciência Aberta teriam surgido na década de 2010. Já o conceito de Open Science é bem anterior, de 1942.

 “No começo dos anos 2010, essa ideia ainda era muito experimental, a partir dali começou-se a construir processos de descentralização financeira. E com o surgimento do Ethereum, percebeu-se que era possível fazer essa descentralização no contexto de dados, com irrigação econômica. Agora, com a disseminação do que é a Web3, já temos um entendimento maior da comunidade sobre DeSci”

Além do amadurecimento da tecnologia, a pandemia de Covid teria acelerado a adoção da DeSci, pois as comunidades de blockchain e biotecnologia passaram a buscar formas de resolver as questões de publicação e financiamento dos trabalhos científicos para avançar com as descobertas nesta área.

Problemas da Ciência Centralizada (o sistema atual): Como já mencionado, o sistema de produção científica hoje apresenta uma série de empecilhos que impedem um avanço maior da inovação e da divulgação das descobertas dos pesquisadores.

Um dos principais problemas é a dificuldade de financiamento, que geralmente acontece via governamental (através de universidades e órgãos especializados) ou por iniciativas privadas de corporações, as biomédicas, por exemplo. São essas autoridades centralizadoras que decidem no que vale ou não alocar recursos, em processos lentos, burocráticos e enviesados, que acabam distraindo os cientistas do seu foco principal, a pesquisa em si.

Ainda falando da questão financeira, ela pode impedir a disseminação do conhecimento entre a própria comunidade científica (que dirá entre a população em geral), já que, além da maioria das revistas e periódicos do meio cobrar dos seus autores pela publicação, eles selecionam os estudos com assuntos mais “vendáveis”. E, para fazer a roda girar, aceitam pesquisas em volume, muitas vezes com temas repetidos, sobrecarregando pesquisadores que atuam como revisores e editores (geralmente de forma voluntária — o que pode comprometer a qualidade e velocidade de como o material é publicado).

Detalhe: financeiramente, a população sai perdendo duas vezes, pois paga impostos para que pesquisas sejam financiadas por universidades públicas, por exemplo, e precisa pagar uma assinatura, se quiser acessar as pesquisas e periódicos científicos.

No sistema atual, ainda existe a questão da falta de transparência na coleta de dados, na metodologia experimental utilizada e nas análises estatísticas, o que impacta na replicabilidade dos resultados. Outro problema é a falta de trocas entre os pares por conta de uma cultura competitiva e do medo de perder os créditos por uma descoberta. Isso atrasa o ritmo do desenvolvimento científico e representa desperdício de recursos financeiros em pesquisas duplicadas. Aí entra outro problema: o gerenciamento de propriedade intelectual, o IP acadêmico, que ainda é um processo arcaico.

Vantagens: Por meio da Web3, é possível adaptar protocolos de blockchain para criar modelos de financiamento de longo prazo para que os cientistas não dependam de grandes e poucas instituições, mas qualquer pessoa com o uso de token s possa apoiar projetos nos quais acredita. Somado a isso, os dados registrados ao longo de sua evolução em registros públicos (ledgers) adicionam um valor intangível que é a governança sobre este dados, que se tornam mais seguros. 

Neste sentido, organizações autônomas descentralizadas (DAOs) também entram em cena como uma comunidade de indivíduos, não necessariamente cientistas, que se interessam e acreditam em determinado tema de pesquisa e se unem para divulgar, fomentar e apoiar financeiramente projetos que despertam sua atenção. As DAOs geralmente investem em projetos que não são tão cobiçados por grandes holding de biotecnologia por serem nascentes, com mercados menores ou negligenciados (como o de soluções para doenças raras, por exemplo).

A fim de sustentar suas operações, as DAOs podem monetizar a propriedade intelectual das pesquisas que apoiam, transformando o IP em um NFT.

O conceito de IP-NFT foi desenvolvido em 2021 pela Molecule, plataforma de financiamento de projetos de investigação em ciência e medicina. Na prática, ele seria a representação do direito de propriedade intelectual de um projeto de pesquisa na blockchain na forma de um token não-fungível. (Aqui no Brasil, a InspireIP transforma o direito autoral em NFTs, mas com foco maior em obras de arte; leia sobre a startup no Draft)

Assim, cientistas conseguem garantir o crédito (intelectual e financeiro) do seu trabalho toda vez que ele for utilizado, bem como a DAO que patrocina aquela pesquisa. Como destaca a o artigo da Forbes (link no item “Para saber mais”): “É quando os NFTs se tornam muito mais do que apenas imagens de macacos e começam a se tornar certificados de propriedade sobre algo como um novo método para aumentar a produção de óleo de palma ou um medicamento para uma doença rara (…)”. Catarina explica:

“Com os protocolos de descentralização, é possível fazer com que o dinheiro encontre as pessoas que originaram aquela pesquisa. Se há 20 pessoas trabalhando nela, conseguimos facilmente identificar, por exemplo, que 0,01% ou 1/20 do resultado financeiro vai pra aquela pessoa, 2/20 para a instituição por trás e assim por diante”

Em termos de publicação, a DeSci também facilita esse processo. Os cientistas passam a não depender de revistas acadêmicas para publicar seus trabalhos, que podem ser adicionados a plataformas e comunidades na Web3, evitando censura a determinados temas e oferecendo acesso para qualquer pessoa de forma gratuita ou com cobrança (os valores seriam revertidos aos envolvidos com base no IP-NFT).

Da mesma forma, diz Catarina, cientistas que liberam seus métodos de pesquisa e experimentos para processos de replicabilidade de resultados ou avanço em novas descobertas, passam a receber os devidos pagamentos pela cessão desses dados:

“Não existe a tese de que Santos Dumont não foi o primeiro a inventar o avião? Então, por que não unir as pessoas que estão distantes construindo as mesmas coisas e com os mesmos interesses e tornar isso economicamente viável para todas?”

Já sobre a revisão, na blockchain, as alterações que forem feitas em artigos por terceiros ficam registradas nos contratos inteligentes de forma transparente. E mais: cientistas podem se sentir incentivados a colaborar, avaliar e revisar artigos de seus pares por serem recompensados com criptoativos ao executar essas atividades, que também lhes concede maior reputação no meio. Além disso, as trocas entre a comunidade científica passam a ser realizadas com pessoas do mundo todo, sem ficar restritas a uma instituição.

Exemplos de projeto DesCi: Segundo o documento aberto DeSci Wiki, criado para divulgar a ciência descentralizada, estão surgindo diversas DAOs com objetivos dentro da esfera científica, que têm como foco desde o financiamento da ciência até a disrupção da indústria de publicação científica, defesa da ciência aberta e a busca de objetivos específicos de pesquisa.

A mais conhecida é a VitaDAO, coletivo que busca financiar projetos de pesquisas sobre longevidade em estágio inicial e criar startups para comercializá-las. Além disso, pretende melhorar a conscientização sobre a longevidade por meio de iniciativas de publicação científica e para o público em geral. No começo de 2023, a VitaDAO recebeu mais de 4 milhões de dólares em uma rodada de investimentos da Pfizer Ventures, entre outras empresas, que serviram para financiar até o momento 17 projetos. (Por esse aporte de uma grande indústria farmacêutica dá para perceber como o assunto já vem chamando atenção do mercado tradicional).

Entre outros projetos que não são DAOs, mencionados pelo documento, está a própria Molecule, responsável por fracionar e descentralizar o IP e os dados das patentes das pesquisas.

O documento aberto ainda menciona hubs científicos descentralizados, entre eles há um criado por brasileiros, o deScier, co-liderado por Maria Goreti Freitas e Danilo Melo, que pretende colaborar no trabalho editorial de publicação de artigos e ajudar cientistas a financiar seus projetos. O deScier está à frente da primeira revista científica brasileira descentralizada, o DeSci Journal.

Desvantagens: Apesar de ser bastante promissora, a ciência descentralizada tem alguns desafios associados a sua aplicação. Para Catarina, a maior questão ainda é de regulação, já que a legislação de cada país em relação à criptografia funciona de um jeito, o que pode prejudicar os projetos criados desta maneira.

“Existem ainda os riscos da construção de uma economia em estruturas descentralizadas, afinal como estamos colocando à prova mecanismos de consenso, se eles não forem muito bem programados, com os smart contracts, essas comunidades podem se tornar uma grande rede social polarizada”

A qualidade e confiabilidade dos dados apresentados nas pesquisas é outro entrave levantado por alguns especialistas da área, já que uma vez inserida uma informação errada na blockchain, ela será imutável e, replicada, levará a resultados científicos inválidos. Além disso, a descentralização abre espaço para “não-cientistas” se envolverem neste universo, avaliando projetos, sem uma especialização acadêmica, por meio de DAOs, por exemplo.

Catarina fala também do desafio de a DeSci acabar “ilhada”, se outros agentes mais “tradicionais” desse ecossistema científico não toparem participar da comunidade:

“O entendimento das grandes empresas é muito importante para que a ciência descentralizada não vire um sistema marginalizado. Quem vejo como interessante para adicionar valor a esse sistema num primeiro momento e quebrar barreiras são as grandes farmacêutica, redes de drogarias e empresas de saúde, de modo geral”

O custo para implantar e manter uma infraestrutura descentralizada de armazenamento e processamento de dados baseada na blockchain também é um empecilho, assim como a adoção da tecnologia em si. Hoje, poucas pessoas (mesmo cientistas) estão familiarizadas com os conhecimentos técnicos específicos que envolvem a Web3.

“Em relação à curva de conhecimento, a sensação que me dá é que as pessoas ainda não conhecem essas ferramentas e elas não estão muito amigáveis. Mas quando isso acontecer, a DeSci fará parte da realidade dos jovens já no colégio”, afirma a especialista.

Perspectivas futuras: Para Catarina, seria necessário ainda pelo menos dez anos para que se crie um mercado de armazenamento descentralizado da informação científica e a sociedade passe a usufruir dos resultados da DeSci.

Mas ela acredita que “para ontem” os pesquisadores e as universidades precisam se aproximar do ecossistema DeSci e desenvolver esse tipo de pensamento descentralizado e de comunidade.

“A partir do momento que um cientista vai fazer uma nova pesquisa ou uma universidade vai financiar um estudo, é preciso pensar em como coletar dados de uma forma mais irrigada e beneficiar quem cedeu as informações, não só chamando as pessoas para fazerem exames clínicos e ficando com os dados delas, mas incluindo esse grupo no resultado da pesquisa, inclusive no resultado econômico, caso o estudo leve a alguma descoberta.”

Para saber mais:
1) Acesse o documento aberto DeSci Wiki, que busca divulgar informações sobre a ciência descentralizada;
2) Leia o artigo do Cointelegraph: “Decentralized Science is key to fixing academic research”;
3) Também no Cointelegraph, acesse: “Pharma companies team up with DeSci to accelerate scientific research”;
4) No Hackernoon, confira o artigo “O que é Ciência Descentralizada (DeSci)” e no Mit Sloan Review, veja também o texto “DeSci a descentralização da ciência”;
5) Na Forbes, leia: “The DeSci movement: Will crypto really solve Science’s biggest problems?”;
6) Acesse o artigo de Jonathan Boilesen, finance leader da descier, no LinkedIn: “Ciência Aberta vs. Ciência Descentralizada: motivação, desafios e desdobramentos”.

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